Os Teratos

Posted: terça-feira, 12 de maio de 2009 by O Blog dos Poetas Vivos in Marcadores:
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O operário no Mar - Carlos Drummond - o bravo!

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Poema em prosa da obra Sentimento do mundo

Na rua passa um operário. Como vai firme! Não tem blusa. No conto, no drama, no discurso político, a dor do operário está na blusa azul, de pano grosso, nas mãos grossas, nos pés enormes, nos desconfortos enormes. Esse é um homem comum, apenas mais escuro que os outros, e com uma significação estranha no corpo, que carrega desígnios e segredos. Para onde vai ele, pisando assim tão firme? Não sei. A fábrica ficou lá atrás. Adiante é só o campo, com algumas árvores, o grande anúncio de gasolina americana e os fios, os fios, os fios. O operário não lhe sobra tempo de perceber que eles levam e trazem mensagens, que contam da Rússia, do Araguaia, dos Estados Unidos. Não ouve, na Câmara dos Deputados, o líder oposicionista vociferando. Caminha no campo e apenas repara que ali corre água, que mais adiante faz calor. Para onde vai o operário? Teria vergonha de chamá-lo meu irmão. Ele sabe que não é, nunca foi meu irmão, que não nos entenderemos nunca. E me despreza... Ou talvez seja eu próprio que me despreze a seus olhos. Tenho vergonha e vontade de encará-lo: uma fascinação quase me obriga a pular a janela, a cair em frente dele, sustar-lhe a marcha, pelo menos implorar lhe que suste a marcha. Agora está caminhando no mar. Eu pensava que isso fosse privilégio de alguns santos e de navios. Mas não há nenhuma santidade no operário, e não vejo rodas nem hélices no seu corpo, aparentemente banal. Sinto que o mar se acovardou e deixou-o passar. Onde estão nossos exércitos que não impediram o milagre? Mas agora vejo que o operário está cansado e que se molhou, não muito, mas se molhou, e peixes escorrem de suas mãos. Vejo-o que se volta e me dirige um sorriso úmido. A palidez e confusão do seu rosto são a própria tarde que se decompõe. Daqui a um minuto será noite e estaremos irremediavelmente separados pelas circunstâncias atmosféricas, eu em terra firme, ele no meio do mar. Único e precário agente de ligação entre nós, seu sorriso cada vez mais frio atravessa as grandes massas líquidas, choca-se contra as formações salinas, as fortalezas da costa, as medusas, atravessa tudo e vem beijar-me o rosto, trazer-me uma esperança de compreensão. Sim, quem sabe se um dia o compreenderei?

Estou publicando aqui um artigo do Hans Magnus Enzemberg - ele é nosso amigo, só não sabe disso ainda!

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A Irresistibilidade da Pequena Burguesia. Um Capricho Sociológico

Hans Magnus Enzensberger
[Este artigo de Enzensberger, datado de 1976, foi publicado no Brasil em 1985. Corresponde a um período em que, apesar da crise estrutural já ter sucedido o ciclo expansivo do pós-guerra, os efeitos da decadência da economia de mercado nos "países centrais" ainda podiam ser repassados para a "periferia" via juros da dívida e, no caso da época da publicação do Brasil, a crise profunda da década perdida podia ainda ser "driblada" pela classe média através das seguras cadernetas de poupança, dos salários elevados dos profissionais especializados nas multinacionais e dos privilégios do funcionalismo público. Uma visão sobre essa mesma classe, abordando a sua relação com a crise, da qual não pode mais escapar, pode ser vista em A Intelligentsia depois da luta de classes e Os bobos da corte do capitalismo, ambos artigos de Robert Kurz]

O fato de que você, que está lendo isso, o leia, é quase uma prova: prova de que você a ela pertence. Perdoe, distinta leitora, fiel leitor, por essa abordagem tão direta (talvez seja exagero dizer "prova"). "No que se segue", admito que pretendo fazer mais afirmações do que provas, por exemplo essa: que existe algo como uma pequena burguesia. Sem pestanejar. Afinal pequena burguesia é uma palavra como qualquer outra, embora soe antiquada (assim como distinta leitora), e o fato de em geral ser pronunciada em tom irritado, praticamente cuspida, não é culpa minha. Sempre foi assim, desde que Ludwig Börne, um pequeno-burguês, a introduziu no vocabulário dos alemães, por volta de 1830.
Sem escrúpulos, isto é, sem ter folheado a "literatura", isto é, algumas dezenas de milhares de páginas sobre o conceito de classe em M., E. e X., ainda sustento que a classe aqui mencionada só pode ser determinada pela sua negação, como sendo aquela que nem é uma coisa nem outra.
Não por curiosidade, apenas na esperança de me fazer compreender, permito-me algumas perguntas.
— Você vive, ou poderia viver, da renda do capital que aplicou em meios de produção?
— Não? Veja, eu já suspeitava disso.
— Mas isso quer dizer que você vive unicamente da venda da sua força de trabalho por hora a um capitalista, que se apossa da mais-valia do seu trabalho?
— É? Tem certeza?
— Então, nada de bolsas? nem juros? nem honorários? nem subsídios? ganhos extras? diárias? Participação nos lucros? Aluguéis? Prêmios? Comissões?
— Nenhum capital intelectual acumulado? Nem ajuda de custo para troca de moradia? Nenhum escritório? Nem moradia própria? Nem verba de representação? Nenhum meio de produção próprio, sequer uma pequena biblioteca de consulta? Em suma, nenhum ganho desviado da mais-valia criada pelo trabalho de outros?
Peço mais uma vez desculpas por essas indagações pedantes e inoportunas.
Possivelmente não é a coisa em si que o incomoda, mas apenas a palavra. Soa tão miserável: pequena burguesia. Mas você certamente não é o único a ficar encabulado. Por isso mesmo, aqueles de quem estou falando tiveram uma porção de idéias sobre nomes para aquilo de que falo (e no que me incluo). Por favor escolha e marque com uma cruzinha o que lhe agradar:
Classe média (velha, nova, alta, baixa, média, "elevada");
Empresariado (pequeno), artesanato, "classe" média;
"Camada" de empregados (média, alta etc.);
"Funcionalismo", "setor terciário", burocracia;
Gerentes, "especialistas", tecnocratas, inteligência técnica;
"Autônomos", profissionais liberais;
"Universitários", intelligentsia ("independente", científica etc.).
Está vendo, portanto, ninguém quer se aproximar demais de você. Apenas lhe convido a situar-se de alguma forma e solicito-lhe a permissão para usar a 1ª pessoa do plural, a fim de simplificar as coisas. Muito obrigado.
Portanto, pertencemos a uma classe que nem domina nem possui aquilo que interessa: os famosos meios de produção; e que não produz aquilo que também interessa, a famosa mais-valia (ou só a produz indireta e secundariamente, um ponto muito debatido nos seminários; mas não é de modo algum tão delicado quanto nos querem fazer crer). Exatamente dessa maneira inexata são os fatos. A pequena burguesia não pertence aos dois principais protagonistas da (famosa) contradição principal, não é nem a classe dominante nem a classe sugada, mas a classe do meio, a classe que sobra, o resto vacilante.
Um resto penoso de suportar para os amantes das imagens limpas, simpáticas, nítidas. A classe que vacila é sempre a que incomoda. Sua existência provoca constante confusão entre teoria e práxis. Para eliminar esse escândalo do mundo (e por uma série de outros motivos que talvez ainda abordemos), nos últimos anos não faltaram tentativas de liquidar a pequena burguesia. Até certo ponto, diziam, podia-se deixar essa tarefa às sólidas regularidades da história. Diziam que, por si (ainda dizem isso em alguns lugares), a parte menor de nossa classe passaria para o lado dos graúdos, ascendendo à alta burguesia, conseqüentemente morrendo com ela, que já está condenada à morte; a outra parcela, bem maior, ficaria ao lado dos cordeiros e lá colheria os frutos do socialismo: os justos haveriam de proletarizar-se devido às (famosas) leis de movimento do capital, embora nem sempre voluntariamente. O resto insignificante de iníquos deveria ser, então, simplesmente eliminado.
Nossos antepassados, se pertenceram à classe aqui descrita, entenderam a mensagem e acreditaram sinceramente na profecia, com temor e tremores.
Mas ela não se realizou. Seja o que for que aconteceu com os pequeno-burgueses, seu apocalipse não se deu. Nem a concentração progressiva do capital, nem a inflação secular, nem o progresso técnico-científico, nem guerras, nem crises acabaram com ela. Nem mesmo a introdução de uma espécie de socialismo pôde eliminar a classe vacilante na União Soviética, na Europa Oriental, nos países do Terceiro Mundo. Ao contrário, produziu-se um novo tipo de pequeno-burgueses, os das revoluções vitoriosas, os bonzos, os quadros, os funcionários públicos: singulares mutantes, inauditas expressões de uma "nova classe" que se parece muito com a antiga.
Mas também nas sociedades capitalistas os antigos bons e maus petít-bourgeois não ficaram inalterados. As figuras Biedermeier do pequeno artesão, do dono da lojinha, do burguês culto e dos cidadãos honrados não desempenham mais um papel central, como outrora (uma olhada nos parlamentos alemães mostra porém que o tipo não morreu). Mas parece que a "classe média" compensou seus sacrifícios, ampliando-se ainda mais quantitativamente, firme e despercebidamente como capim. Em cada mudança estrutural da sociedade ela lançou, por assim dizer, novas raízes. A cientifização da produção, o crescimento dos setores terciário e quaternário da economia, o aumento de gerências privadas e públicas, a extensão da indústria da consciência, as instituições pedagógicas e médicas: a pequena burguesia esteve presente em tudo isso. Também depois de cada mudança política ela instalou-se imediatamente nos novos aparatos estatais e partidários, e não apenas defendeu mas alargou a sua "posição" social.
Uma teoria capaz de fundamentar a força de sobrevivência, a capacidade de resistência e o sucesso histórico dessa classe parece não existir na atualidade. Já o fato de que a pequena burguesia é tão grosseira e obstinadamente menosprezada, há pelo menos 150 anos, merece explicação. Ninguém colaborou mais para essa subvalorização do que a própria pequena burguesia. Tal fato certamente se relaciona com sua peculiar consciência de classe. Ela foi frágil desde o começo e, hoje, só se pode descrever como pura carência. Pois assim como a classe só se determina analiticamente de forma ex-negativa, também deste modo se entende a si mesma. O pequeno-burguês quer tudo, menos ser pequeno-burguês. Tenta obter sua identidade, não se reconhecendo membro de sua classe, mas negando-a. Válido deve ser só aquilo que o distingue: o pequeno-burguês é sempre o outro. Esse estranho ódio de si mesmo funciona como um disfarce. Com sua ajuda, a classe tornou-se quase invisível. Ação solidária e coletiva não entra em questão para ela; jamais terá a autoconsciência de uma classe. Esse mecanismo de rejeição leva subjetivamente a fazer com que ela não seja respeitada socialmente; objetivamente, impede a formação de organizações de classe univocamente determinadas, politicamente abrangentes. O quadro social da pequena burguesia tende ao mimetismo, quanto mais aumenta, mais inconfundível ela se torna.
Provavelmente nunca houve antes uma classe tão dividida, tão desintegrada. O extremo fracionamento objetivo e subjetivo da pequena burguesia não é um enigma. Nasce da sua situação econômica e de sua história. Sua relação com os meios de produção passa por inúmeras mediações e derivações. Daí se segue, de um lado, a sua incapacidade política em tomar o poder. Essa classe não quer e não pode dominar, e interioriza essa impotência de forma muito particular. O pequeno-burguês recusa o poder e adora-o, mas isso significa que o delega e só o percebe enquanto poder delegado, à medida que o administra, justifica e o põe em dúvida. Mas quanto menor se torna a classe dominante propriamente, tanto mais ela precisa da pequena burguesia, para generalizar e transmitir o seu poder. De outra forma, há muito que a classe trabalhadora não poderia mais ser mantida desarmada e controlada. Assim também a influência política da pequena burguesia se pode determinar ex-negativo, como uma espécie de inarticulado poder de veto. Por isso explica-se o interesse da pequena burguesia no aspecto formal da política, nos procedimentos, prescrições, regras legais e formas de relacionamento.
A incapacidade de unificação e de aliança tem porém seu lado reverso. A multiplicidade e a sua articulação extremamente graduada segundo o status, grupos profissionais e propriedade, fundamenta também a resistência, a dinâmica e a agressividade da classe. Ela é uma vantagem na evolução social, um fator de auto-subsistência. Em sistemas biológicos vale a frase: uma espécie é tanto mais difícil de exterminar quanto maior sua variabilidade, seu pool genético. Uma regra análoga vale na sociedade. Um monolito social sobrevive mais dificilmente às mudanças de condições históricas, do que um conjunto de articulações variadas. A capacidade de adaptação, ideologicamente pouco valorizada e tachada de mau-caratismo e oportunismo, acusada exatamente pelos pequeno-burgueses, aumenta sem dúvida as chances de sobrevivência de uma classe. Ninguém a tem em maior grau do que o petit-bourgeois. Nenhum nicho social é tão pequeno, tão afastado, tão isolado, tão exposto, que ele não o tente ocupar. Nunca fixar-se definitivamente e agarrar qualquer possibilidade: é a única coisa que a classe aprendeu de sua história tão cheia de mudanças. Há muito se despediu de seu antigo caráter social, do hábito pacato, filisteu e tacanho dos primeiros tempos. Ainda não se sabe até que ponto essa predileção pela perseverança arrogante é herança histórica; também a antiga pequena burguesia do século XIX era uma classe nervosa, irritadiça, facilmente indignada e rebelde, com uma tendência esporádica para o radicalismo, à súbita excitação, crítica por ressentimento e corajosa por medo. Foram pequeno-burgueses que criaram a figura do burguês tacanho; foi de burgueses que se compôs a boemia, cuja especialidade era chocar outros pequeno-burgueses.
Hoje em dia a classe está cheia de homens progressistas, ninguém mais ávido do que eles para seguirem as mais novas tendências. Essa classe está sempre na última moda. Ninguém é capaz de mudar mais depressa suas ideologias, roupas, formas de convívio social e hábitos, do que o pequeno-burguês. Ele é um novo Proteu, cuja capacidade de aprender vai até a perda de identidade própria. Sempre fugindo do que envelheceu, ele corre atrás de si mesmo.
Derrotas políticas podem abalar a classe trabalhadora na sua consciência de classe; mas é impossível roubar-lhe a tranqüila convicção da necessidade de sua existência. Também a alta burguesia se julga indispensável. A pequena burguesia, ao contrário, tem de lutar constantemente contra a sensação de ser supérflua. O cinismo é privilégio dos dominantes. Mas a classe rejeitada, pelo contrário, busca justificativas; está permanentemente à procura de sentido. É tão engenhosa quanto inescrupulosa, mas sempre necessitada de moral. Produziu obras-primas solitárias em matéria de racionalização e dúvida. Mas sua autocrítica e a sua autonegação são de dimensões limitadas. Uma classe não pode eliminar a si mesma. Por conseguinte, dúvida e derrocada servem em última análise de estímulo e prazer para a pequena burguesia. Torná-la insegura é fácil. Dissuadi-la de si mesma é impossível. A pequena burguesia questiona-se incessantemente, é a classe experimental por excelência. Mas o processo de auto-estímulo serve apenas para manutenção e ampliação de sua própria esfera. Sua insegurança tem método; é usada para uma estratégia que não desiste da quimera da segurança.
Como se explica a posição central que a pequena burguesia mantém em todas as sociedades altamente industrializadas da atualidade? Nossa classe não dispõe de capital, nem tem acesso direto aos meios de produção; está mais distante que nunca do poder econômico e político. Não saberá ela mesma em que reside sua força? Ou será medrosa demais para soltar esse gato do saco? Chegamos perto da resposta, simples e lapidar: a pequena burguesia dispõe hoje em dia de hegemonia cultural em todas as sociedades altamente industrializadas. Tornou-se a classe modelar, a única que produz em massa as formas de vida cotidianas e as torna obrigatórias para as demais classes. Ela promove a inovação. Decide o que é belo e desejável. Determina o que será pensado (os pensamentos dominantes já não são os da classe dominante, mas os da pequena burguesia). Ela inventa ideologias, ciências, tecnologias. Dita o que significa a moral e a psicologia. Decide sobre o que deve "acontecer" na chamada vida privada. É a única classe que produz arte e moda, filosofia e arquitetura, crítica e design.
Toda a esfera do consumo de massa é decididamente marcada pelas idéias da pequena burguesia. Artigos de mercado e propaganda são projeções de sua consciência. No consumo repetem-se em forma generalizada todos os traços do caráter social pequeno-burguês: dinamismo e individualismo, progresso como fuga para a frente, formalismo e inovação permanente, esbanjamento e necessidade de continência. Basta apontar para a forma dos dois bens de consumo simbólicos da nossa civilização: aparelho de televisão e automóvel particular. Só o pequeno-burguêss poderia inventar esses singulares objetos.
Igualmente impressionantes são suas façanhas no campo da produção imaterial. Os aparatos da superestrutura são todos ocupados por membros de nossa classe, assim como todas as "correntes", "orientações" e "movimentos", que têm algum papel nas sociedades altamente industrializadas, são inspirados, carregados e impostos pela pequena burguesia: do turismo ao do it your seif, da Vanguarda artística ao urbanismo, do movimento estudantil à ecologia, da cibernética ao movimento feminista, do esporte à "liberação sexual" e assim por diante, o tempo inteiro. Cada movimento alternativo dentro de nossa cultura foi imediatamente tomado pela pequena burguesia — basta pensar no exemplo da música rock que originariamente foi uma expressão de jovens proletários, assim como cinqüenta anos antes fora o jazz. Até ideologias originalmente bem subversivas, como o anarquismo e o marxismo, hoje em boa parte são apropriadas pela pequena burguesia.
Só uma pormenorizada análise materialista poderia explicar como a "classe experimental" chegou à sua hegemonia cultural. Um alto grau de industrialização certamente é necessário, embora não seja uma condição suficiente. O modelo da cultura pequeno-burguesa pressupõe certa riqueza social. Só quando a produção é altamente organizada, as esferas sociais da distribuição, da circulação e da administração podem se estender, formando uma larga "classe média". Inversamente, é a crescente centralização e concentração de capital que faz com que a classe dominante se reduza, tendo de sacrificar a sua hegemonia cultural.
A produtividade frenética da pequena burguesia, sua capacidade de inovação, porém, deveria ser explicada simplesmente pelo fato de que não lhe resta outra coisa. Ela é "inteligente", "talentosa", "inventiva", porque disso depende sua sobrevivência. Os donos do poder não precisam disso; mandam outros inventar, compram inteligência e "atraem" talentos. O proletariado, ao contrário, priva-se sistematicamente de toda a produtividade autônoma. "Vocês não têm nada que pensar!" berrava já F. W. Taylor, pequeno-burguês e pai da racionalização, referindo-se aos operários de produção, e naturalmente não foi só no Ocidente. Assim, ex-negativo, é que se explica o fabuloso talento da pequena burguesia, como a maior parte das suas outras qualidades.
Muito diversa é a questão do que torna a cultura hegemônica da pequena burguesia tão irresistível. Como ela pôde tornar-se modelo universal, seguido por bilhões de pessoas? O que o torna extraordinário? Devido a que qualidade ela elabora praticamente todos os projetos alternativos, tanto nacional como mundialmente?
É uma verdade evidente que o proletariado europeu está marcado, em suas formas de vida e aspirações, pela cultura pequeno-burguesa. Mas também a antiga forma de vida da alta burguesia foi totalmente liquidada por ela; seu luxo encolheu para o formato das revistas ilustradas; seu padrão "exclusivo" é apenas aquele dos pequeno-burgueses que se permitem usar uma marca cara. Inversamente, é apenas questão de tempo que a escova de dentes elétrica entre triunfalmente nos cortiços. Já não existe hoje mais qualquer bazar oriental ou mercado malaio, ou caribense, onde os fósseis básicos da cultura pequeno-burguesa não tenham conquistado, há muito, seu lugar. Os fundamentos econômicos dessa invasão total e geral são conhecidos e não foram criados pela pequena burguesia. Contudo, o que qualquer consideração puramente econômica exclui é a dimensão cultural desse processo (Pier Paolo Pasolini o descreveu exemplarmente para a Itália).
Portanto, fica a indagação: o que é tão singular, tão sedutor no isqueiro de mesa, no gosto de Pepsodent, na poesia concreta. na sala para cultivar um hobby, no programa "Vila Sésamo", no limão de plástico, na pesquisa de comportamento, em Emma e Emmanuelle, no desodorante, no Sensitivity Training, na câmera Polaroid, na mercadoria exposta, na parapsicologia, no Peanuts e na liga metálica, na camiseta, na Science Fiction, no seqüestro de aviões e no relógio digital, que ninguém, nenhuma nação, nenhuma classe social, de Kamtschatka à Terra do Fogo, lhes seja imune? Não terá realmente aparecido nenhuma resistência contra o que nossa classe inventa? Ninguém escapará, nem mesmo os congoleses, de se munirem de cuecas desenhadas por um modista francês? Também os vietnamitas terão de engolir Valium? Nenhum caminho passará longe da terapia de comportamento e do Concorde, de Masters & Johnson, da cidade-satélite e da pesquisa de currículos? E o estofado em material semelhante ao couro, que respira, que é resistente à sujeira, com almofadas de assento e encosto soltas, de espuma de borracha, presas com botões, molejo de espuma de borracha amortizado com algodão, com fivelas ornamentais, divisões inferiores em tiras de couro, transportável e giratório, sobre rodinhas de cromo, essa peça maravilhosamente linda que me persegue implacavelmente, que está à minha espreita por toda parte como o ouriço do conto de fadas, que está sempre ali, nas festas de aniversário, na televisão, no quarto-e-sala de um operário turco em Berlim-Schöneberg, no Spiegel, no dentista, nas férias aventurescas, nos órgãos do Partido, na liquidação, no belo Danúbio azul, na Casa Branca e no depósito de lixo — será que nada adianta, será que ela continuará irresistivelmente seu trajeto, essa encarnação de todos os sonhos floridos de nossa classe, até chegar aos souks de Damasco e ao aeroporto de Xangai?
Provavelmente já está lá há muito tempo.

Artigo publicado em Com raiva e paciência: ensaios sobre literatura, política e colonialismo. São Paulo: Paz e Terra, 1985, p. 87-95.

A Catequista

Posted: domingo, 10 de maio de 2009 by O Blog dos Poetas Vivos in
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Em qual brecha, qual cochilo meu
você – xereta - aconchegou-se neste
fugaz coração ?
Agora sou sarjeta inerte, ultrajado
esperando tua gorjeta,
sou um fantoche paisano e gentil


Qual saída ou saidera conduz-me a teu paço ?
O que anestesia, paralisa teu esplendido passo ?
Não há sossego
tua face é majestade onde floresce meu apego
Espontâneo meu caminho de ser o excêntrico servo
bobo da corte sozinho


Suave o teu traje:
num tecido de cetim, um vestido bege
Maquiada de virgem oscilando o consenso
da vertigem obscena e do trejeito angelical
Talvez tua proeza está no justo deslize
de catequizar o imoral


Você é o êxtase dum sentimento framboesa
narcótica cor cereja de uma ânsia
corrompido néctar de jiló
gelo, queima ácido
Estende-me uma luxuria como um firme aço
Um querer inesgotável, diariamente assíduo


Qual jejum me purifica ? desconheço
Qual monge traz a paz ? a consciência confusa
Qual xarope me cura? anulo toda ciência
Qual pajé me guia? não assumo culpa
Qual sargento me dá ordem?
vou matar o meu algoz !


Obcecado, discipulado teus atos
tão docentes
Minha indecente pretensão instintamente acende
Desperta-me um fascista tosco, não dispersa
Um fanático terrorista, voraz cafajeste
dizendo: não desista”


É a tua catequese que instiga
a nua vil beleza do suor impuro
Todo sujeito esconde um sentimento brejeiro
lama pro predicado sujo
Rixa com a vida alheia não me interessa
Só um desabafo laxativo - ninguém no mundo presta!


Desculpem o desacato estou louco, sem juízo!
Não desprezo os santos, não ironizo os puritanos
nem quero perder o paraíso
Mas conheci ti, o Éden, e preciso morder a maçã
Minha inocência se afrouxa na praxe do profano
apesar de toda reza

Oração da manhã

Posted: quinta-feira, 7 de maio de 2009 by O Blog dos Poetas Vivos in Marcadores:
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Dá-me a vida em abundância
Tu que não encontraste lugar nos sistemas
Tu que tens tantos nomes
eu te chamo Inspiração


Vem a mim o vosso reino
imaculado, sem ementa
Vem, levanta e enfrenta
o Estado dos meus problemas
o tribunal injusto da história


Seja feita a tua vontade
o teu mito a tua verdade
o teu escárnio e a tua glória
-artesanal estratagema


Este teu pão que me alimenta
é fé e fogo - feito água benta
meu amigo imaginário


E se chama Inspiração
Tu que estás acima dos homens
no cerne da arte e do poema
Dá-me a vida em abundância

Roberta Villa

Meu amigo Peixe Grande

Posted: quarta-feira, 6 de maio de 2009 by Fabiano Fernandes Garcez in
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Contar histórias é uma dádiva, mas nem todos sabem fazer isso, outros, por sua vez, fazem muito bem. Há aqueles, porém, que não só contam, mas também vivem suas histórias. A ortografia contribuiu com eles quando não mais diferenciou História – a ciência histórica, a disciplina que aprendemos na escola -, e Estória – narração fictícia, conto de origem oral e popular, fábula.
Tenho um amigo que é um fabulador nato, para uns um mentiroso de mão cheia, para outros um contador de histórias tão magnífico, que até ele chega a acreditar nelas. Seu nome? Não posso dizer, até mesmo porque se dissesse ele diria que é mentira. Chamamos ele de Edward Bloom, protagonista de Big Fish, quem assistiu a esse fabuloso filme saberá o que quero dizer, quem não assistiu, depois de ler esta crônica, vale a pena correr até uma locadora, uma das que ainda resistem firmemente, e dar uma conferida.
- (...) se ele contasse, ele apenas diria os fatos, não colocaria nenhum sabor... Essa fala de Ed Bloom resume bem o modo de enxergar a vida dele e desse meu amigo, - que talvez sejam o mesmo. Existem pessoas que gostam de retratar a vida por fatos reais, comprováveis, outros são grandes demais para a vidinha que levam, então preferem se referir a ela de forma impressionante. Não irreal, mas melhorada. Eles não mentem, não são caluniadores baratos, são poetas, criadores de novas realidades, dá mesma forma que os grandes escritores são. O objetivo é tornar suas histórias mais bonitas e atraentes para quem lê ou ouve.
Meu amigo vai a uma viagem inóspita, difícil, sei que lá ele viverá fatos terríveis, mas quando ele voltar, é certo que voltará bem, essas histórias se tornarão fantásticas, surreais, inacreditáveis e principalmente maravilhosas de se ouvir.

Você viu ou colocou poesia aqui?

Posted: quarta-feira, 29 de abril de 2009 by Fabiano Fernandes Garcez in Marcadores: ,
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Um grande amigo meu veio com uma provocação: O poeta vê poesia nas coisas ou põe poesia nas coisas que vê? Sei lá, respondi. Não sabia mesmo, mas resolvi refletir um pouco.
É impossível tentar definir poesia em apenas trezentas palavras, mas vamos lá. Primeiramente devemos separar poesia de poema. Poesia é o conteúdo, esse conteúdo pode conduzir a transcendência, beleza ou emoção, e poema é apenas o texto escrito em versos. Assim, o poema pode ter ou não poesia. Já a poesia pode estar presente em um poema, um filme, até mesmo em um entardecer, enfim, em tudo que, de certa forma, percebemos pelo sentimento, ou pela emoção.
Acho que o poeta enxerga poesia onde outras pessoas não veem, para ele é ver a poesia já existente, para os outros, quem sabe, seja colocar poesia onde não existia. Conheço alguns poetas que jamais escreveram um poema sequer, mas em conversas sempre aparecem com uma sacada legal, uma visão diferente sobre alguma coisa. Ver poesia, talvez, seja estar perceptível as belezas do mundo, das coisas, dos homens e das ideias. Há uma definição que gosto muito, cujo autor não me recordo, diz assim: Poesia é o olhar incomum sobre os homens comuns.
Um dia escutei os versos da canção Relicário de Nando Reis: (...) Sobe a lua porque longe vai?/Corre o dia tão vertical/ O horizonte anuncia com o seu vitral/ Que eu trocaria a eternidade por esta noite (...) Achei maravilhoso, já imaginou trocar a eternidade por uma noite apenas? E pior, saber que será só uma noite? Eufórico cantei para um amigo, ele disse: Nada a ver, né? Se foi o Nando Reis que colocou nesses versos, ou se só eu consegui ver, não sei, mas que há poesia ali, há!

Um Poema do Pedro Paulo

Posted: quinta-feira, 23 de abril de 2009 by O Blog dos Poetas Vivos in Marcadores:
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O BEMVINDO

De onde você vem vindo?
Do engodo
fatalista
das máquinas incansáveis
que repetem, mudas e
sem olhar para os lados,
os movimentos insossos
Da virtude que deus lhes deu?

Ou da aurora
que abraça o firmamento
e morde
a liberdade dos homens?

Passo lúdico é
sorrir para o destino:
papel em branco
com sede de giz-de-cera

Trabalho de criança
que fantasia para além
dos presentes que só-lhes-dão
no dia de aniversário.


Pedro Paulo
Belo Horizonte, 15 de fevereiro de 2009.

Metáfora e Ironia

Posted: quarta-feira, 22 de abril de 2009 by Fabiano Fernandes Garcez in Marcadores: ,
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Você é um anjo! Você é um tesouro! Não leitor não é um diálogo de um casal de namorados apaixonados. São exemplos de metáforas, tá lá no dicionário: Figura de linguagem que consiste em estabelecer uma analogia de significados entre duas palavras ou expressões, empregando uma pela outra. (Aulete Digital).
Melhor do que saber o que é, é saber para que usamos, e olha que usamos muito..., utilizamos a metáfora para indicar uma comparação de alguma coisa, por exemplo: Você é um anjo! Quem diz isso, compara as qualidades do anjo: bondade, inocência, beleza, divinidade e etc a alguém. Os poetas usam em seus poemas a torto e direito para expressar o que querem dizer, dizendo outras coisas. Agora, quando dizemos: Você é um anjo! Com um tom de voz mais baixo ou mais pausada que o normal, querendo dizer o contrário disso, aí já é a ironia, outra figura de linguagem. Também a utilizamos muito no dia a dia, o pior é quase sempre ninguém entende.
Conheci um rapaz que não entedia metáfora e, muito menos, ironia. Era um inferno conversar com ele. Brincadeira então? E piadas? Já imaginou contar piadas a alguém que não consegue entender que o que é dito não é o que está sendo dito? Olha que o rapaz se dizia muito culto, era estudante de uma dessas universidades badaladas e tudo. Certa vez, falando sobre futebol, disse eu: É, o Corinthians dançou! Como assim dançou? Dançou o quê? Ele respondeu.
Tanto a metáfora como a ironia fazem da língua portuguesa, seja ela a culta ou a coloquial, uma das mais lindas e inventivas do mundo. Você não precisa saber o que é metáfora ou ironia para saber como alguém dança sem dançar e que esse rapaz devia ser muuuuito inteligente ...

Este conto é ruim (não digam que não avisei)

Posted: domingo, 19 de abril de 2009 by O Blog dos Poetas Vivos in Marcadores:
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José Ancéfalo da Silva
-André Prosperi-

Segunda feira, 12 de maio, 5 horas e meia da manhã, hora de aprontar-se para o trabalho. José Ancéfalo levanta-se da cama, liga a TV no canal de sempre. Toma conhecimento de algumas notícias. Vai até o banheiro fazer o que deve ser feito, sai do banheiro. Troca o pijama marrom pelo uniforme azul. Requenta o café de ontem, dá dois goles. Um pouco ainda resta no copo. Dá comida ao cão que lhe agradece como se o fato fosse inédito. Desliga a válvula do botijão de gás, pega as chaves e sai após ter verificado se a porta havia sido devidamente trancada. Chega ao ponto de ônibus às 6 horas. Avista o 12C. Dá o sinal, o ônibus pára. José entra no ônibus e deseja um bom dia ao motorista que não o escuta. Paga a passagem, gira a roleta. Após girar a roleta pergunta ao cobrador se a mãe do mesmo havia gostado do jogo de ontem à tarde, o cobrador lhe responde que não, pois a mesma havia estado com o pai de José o tempo todo. Os dois sorriem e José acomoda-se num assento vago. Algumas quadras adiante o ônibus pára, mais passageiros sobem. Compartilham o mesmo itinerário. Um dos passageiros é Margarida que, ao contrário de José, não diz bom dia ao motorista nem faz piadas envolvendo a mãe do cobrador.
Ninguém naquele ônibus era incomum, entretanto, Margarida, que também era comum, pôde avistar um homem sentado com um aspecto menos comum que o de costume. Não soube reconhecer a característica causadora de tal aspecto em tal homem, tão pouco estava preocupada, apenas sentou-se ao seu lado, também não pelo fato de o homem carregar um aspecto pouco comum, mas por ser o único assento vago.
Por ser a pessoa mais próxima, era o homem que mais chamava a atenção de Margarida. O homem parecia estar com a cabeça em outro lugar. Não, não era este o fator incomum. O homem parecia estar com a cabeça em outro lugar de uma maneira diferente, não dava pra explicar. Motivos desconhecidos levaram Margarida a perguntar o nome do sujeito:
- José, e o seu?
- Margarida.
- muito prazer!
- O prazer é meu –Disse Margarida -Engraçado, pego este ônibus todos os dias e não me recordo de tê-lo visto outras vezes.
-É mesmo engraçado, pois pego também o mesmo ônibus todos os dias. Inclusive, todos os dias te vejo nele, talvez você nunca tenha prestado atenção em mim...
O mundo não sabia que aquele momento marcaria o início de uma linda história de amor.

Sobre a mesa havia uma toalha branca com detalhes vermelhos na borda, um par de velas acesas e um vinho chileno. Um recipiente ocultava o alimento enquanto Margarida aguardava ansiosamente o soar da campainha. Não se passaram cinco minutos da hora marcada a campainha soou. José Ancéfalo havia chegado. O fatos procedentes seriam tão previsíveis quanto os precedentes, não fosse por um detalhe: esta noite José Ancéfalo revelaria a Margarida um grande segredo. Mas que segredo seria este? O que José revelaria a sua amada naquela noite? Margarida ainda não sabia, entretanto, a angústia da dúvida era poupada devido a ausência de questionamento. Além do mais, José em momento algum disse a Margarida que trazia segredos consigo.
Há muito mais curiosidades que segredos, assim como, muitas vezes, nos ensina mais uma pergunta que uma resposta, entretanto, não despertaremos em vão a curiosidade do leitor. Segue a história oculta de José Ancéfalo da Silva:

José caminhava pelas ruas de seu bairro quando, de repente, espirrou. Havia levado as mãos ao rosto por reflexo e ao baixá-las, notou algo de estranho a repousar sobre as mesmas. Como é comum nos momentos em que algo de inesperado nos ocorre sem aviso prévio, José se surpreendeu: Seu cérebro estava em suas mãos e, não sabemos se foi o medo ou qualquer outra coisa, mas algo fez José Ancéfalo soltar o que segurava.
Agora permaneciam ali, José Ancéfalo e o cérebro, os dois, frente a frente.
Apesar de estar com o aspecto de quem caiu da cama durante o sono, o Cérebro fitava José com olhar de indiferença.
José o olhava com admiração.

Antes de o silêncio entre os dois tornar-se nocivo, o Cérebro começa a desabafar: “Hah! Livre finalmente! Livre das correntes da ignorância!”. Certamente diríamos que o cérebro estava feliz, caso tal estado fosse passível de ser alcançado por um cérebro fora de seu crânio. No entanto, faremos uso do termo Bom Humor. O cérebro estava de bom humor, mas este trazia um tom de revolta, agressivo até. Tanto que José chegou a sentir-se ofendido quando o cérebro colocou em questão a utilidade do relacionamento mantido, até poucos instantes, entre os dois. Aí começou a discussão. José banhava-se em lágrimas, chorava feito criança: “Ai meu Deus, o que será de mim? Como farei eu sem cérebro?”. O cérebro, com seu oportunismo peculiar, responde: “Bom, não sei o que o senhor fará de agora em diante, uma vez que o desenvolvimento de um raciocínio lógico sob o prisma científico nos comprova seu óbito. Quanto a mim, poderei ver as coisas antes de serem distorcidas por sua retina”. Antes que José pudesse indagar qualquer coisa, teve sua atenção roubada ao notar uma figura furtiva dobrando a esquina: O Eu escapara não se sabe como. No calor da discussão nenhum dos dois pôde dar importância ao sucedido.
Separados, cada um seguiu seu rumo. O primeiro em busca da felicidade, o segundo em busca da verdade.

José relatou o ocorrido soluçando de tristeza, enquanto Margarida demonstrava uma compreensão assustadora: “Veja o lado bom das coisas, antes viver sem cérebro a carregar um que nos faça sofrer. Quanto ao Eu, quem não passa a vida inteira à procura de um, dentro ou fora de si?” Tais palavras trouxeram paz ao espírito de José Ancéfalo, fortalecendo assim os precoces laços matrimoniais discretamente anunciados nas entrelinhas desta dramática história.

Um problema que nós, narradores, encontramos, sabemos, é o de não poder narrar dois fatos ocorridos ao mesmo tempo, ao mesmo tempo. Isso é realmente muito chato, porque quando dois fatos ocorrem ao mesmo tempo e um deles é pouco relevante, não hesitamos em optar por narrar o mais relevante primeiro, ou, o que virá a acrescentar mais conteúdo ao que se narra. Entretanto, não é este o meu caso. Veja bem, o José Ancéfalo foi abandonado pelo Cérebro, logo, pressupõe-se que cada um seguiu um rumo diferente ao mesmo tempo e, tanto o que sucede ao José quanto o que sucede ao Cérebro, convenhamos, são informações importantíssimas para o bom desenvolvimento desta história. Claro, tem ainda a Margarida, cuja característica interessante é a pretensão de escrever a história de sua vida a próprio punho enquanto interage com o acaso, assim como o leitor. Mal sabe Margarida quem escreve sua história. Enfim, a despeito das adversidades, retomemos a narrativa:

O local estava diferente. As paredes bem pintadas, a grama aparada. Chegou a pensar que estava no lugar errado até checar os dados de endereço mais uma vez: Era lá mesmo o lugar. Tocou a campainha. Segundos depois surge uma mulher gorda, de cara rosada e vestindo um pijama desbotado:
- Pois não?
- Por favor, o senhor José se encontra?
- Ô Tonho, tem uma coisa aqui querendo falar...
- Cérebro!
- Quê?
- A “coisa”, é Cérebro!
- Ô Tonho, vem cá! Tem um tal de Célebro querendo falar com um tal de José.
Em instantes alguém surge na porta:
- Quer falar com quem, meu amigo?
- Com o senhor José Ancéfalo, por favor.
- Ah, ele quer falar com o Zé meu amor. - Falou dirigindo-se à esposa.
- Zé? Qual Zé?- Perguntou a mulher.
- O que morou aqui antes da gente alugar a casa. Olha, faz tempo que ele se mudou viu senhor...
Após uma longa conversa com o casal o Cérebro consegue o endereço atual de José Ancéfalo. Dos males o menor, mas já era tarde da noite, então decidiu ir tratar com José no dia seguinte.

Margarida ocupava-se dos afazeres domésticos quando escutou alguém bater na porta. Era o cérebro. Ficou surpresa, jamais imaginara a possibilidade de conhecer o cérebro de seu esposo.
- Por favor, o Senhor José se encontra? – pergunta o Cérebro.
- Não, o Zé tá trabalhando. Entra, daqui a pouco o Zé chega. Você que é o Cérebro?
- Sim.
- O Zé falou bastante de você, entra, fica à vontade.

Os dois entraram. Margarida perguntou se havia problema em conversarem enquanto ela lavava louças. O Cérebro disse que não.
- Então, - continuou Margarida – O Zé me contou o que aconteceu. Até hoje não entendo, sabia?
- É mesmo, o que ele te contou? - Indagou o Cérebro, apenas para dar fluidez ao diálogo.
- Ele disse que você largou ele sozinho, de repente. E como se não bastasse saiu esculachando o coitado, dizendo que ele nunca serviu pra nada...
- Perdão minha senhora, -Interrompeu o Cérebro- Não esculachei a ninguém, apenas o tornei esclarecido acerca de suas debilidades, mais precisamente no tocante ao intelecto, e saí à procura da verdade, aliás, a senhora deveria fazer o mesmo...
- Ah! Faça-me o favor! Vou eu agora deixar de lavar minha louça pra sair por aí procurando verdade... No dia seguinte já não tem mais nenhum prato limpo!
- A estupidez é mesmo o mal da humanidade- Disse o Cérebro lançando um olhar de desdém –Por isso vivem nas sombras da ignorância, todos vocês. Enquanto há um mundo imenso lá fora, ansiando por ser desvendado, vocês simplesmente se acomodam, sentam, cruzam os braços e dão-se por satisfeitos. Eu prefiro a morte a tal condição!
- Morte! Morrer é fácil, qualquer um consegue. Quero ver é você passar uma semana sem ter o que comer, aí sim!
- Como ousa falar desta forma!- Pronto, o Cérebro aceita a provocação – A senhora por acaso faz idéia de quantos homens deram suas vidas em busca da verdade?
- Ah! Por acaso o Senhor Cérebro pode me dizer quantas verdades já deu vida a algum homem?
A discussão foi interrompida devido à chegada de José Ancéfalo. Margarida saúda o retorno do amado com um beijo no rosto e o alerta a respeito do visitante.

Neste momento encontram-se os três na cozinha, Margarida terminou de lavar as louças, no momento varre o chão. José e o Cérebro iniciam o diálogo num tom tímido e trivial regado a café:
- Então, conte-me as mudanças de sua vida. Pelo visto foram muitas!- sugere o Cérebro.
- A vida continua, né?- Diz José olhando para o teto - Tá tudo bem, fui promovido na empresa, aluguei essa casa aqui, que é bem maior, comprei um carro, até arranjei uma companheira pro Teobaldo (o cão). Como deve ter notado me casei com uma pessoa especial. - Neste momento José dirige o olhar à margarida - Sabe, ela cuida bem de mim. Quando eu fico triste ela me consola, me diz pra sempre ver o lado bom das coisas. Diz que sou importante para o mundo. Que de todos os espermatozóides do meu pai, eu era o melhor. É engraçado, mas foi ela quem me ensinou a assoviar. Bom, não posso reclamar da vida, é o que quero dizer. Estou feliz com a vida que tenho. Mas fale-me de você, por onde andou este tempo todo?
O Cérebro estava confuso, pois constituía uma enorme incoerência a idéia de alguém caminhar por aí sem cérebro. Assim como a idéia de alguém caminhar sem cérebro e, como se não bastasse, julgando-se feliz, constitua um absurdo. Mesmo assim deixou as confusões de lado e começou a narrar sua história:
- Confessar-lhe-ei. Estava muito pouco satisfeito com a situação em que nos encontrávamos. Parecíamos, citarei um exemplo bem claro, um par de sapatos sem boa comunicação, compreende? Um segue o outro, no entanto, nenhum dos dois sabe para onde estão indo, compreende? – José assentia com a cabeça – Não mais era possível conviver com tal situação. Era necessário sair em busca de respostas. Em busca de melhores condições para a expressão de minha existência. Era necessário sair em busca da verdade...
– Ele acha que verdade enche barriga! – Interfere Margarida. O Cérebro mais uma vez nada compreende.
– Continue – Diz José, num tom tranqüilo.
– Como ia dizendo, fazia-se necessário desvendar os enigmas da vida. Coisa irrealizável enquanto parte de sua estrutura empírica. Suas ilusões, e principalmente suas crenças, limitavam muito minha percepção da realidade e o desenvolvimento pleno e sadio de minhas faculdades. Você era uma prisão quando a liberdade era necessária.
- Entendi tudo! Diz José, interrompendo a narrativa do Cérebro – Não tinha mais o que fazer e resolveu vir aqui me encher o saco!
- De maneira alguma! - O Cérebro, neste instante, começa a explicar o verdadeiro motivo de sua visita: “Até agora discorri acerca apenas dos motivos causadores de minha revolta, pois então tenho de revelar-lhe as conseqüências da mesma, bem como as causas deste retorno repentino. Fui embora com a certeza de que entenderia a vida, finalmente, como deve ser entendida. Estava convicto de que encontraria respostas a minhas perguntas, uma vez estando apto a ver as coisas com realidade, com clareza. Adianto-lhe, a partir do momento em que lhe deixava, deixava para traz também a possibilidade de alcançar meus objetivos: Estava completamente equivocado e não sabia. Desde o momento em que fui embora não experimentei outro sentido senão o do tato, e diga-se de passagem, com a sua ausência este tato serve apenas para proporcionar-me a dor. Isto foi provado: a falta de sua imaginação não mais potencializa a dor, no entanto, não mais a interrompe” – Coitado do José, não entendeu coisa alguma do que ouviu. Mesmo assim manteve a atenção sem desvios. O cérebro prosseguiu: “Carrego comigo desde então a dor e a dúvida. Se saí em busca de clareza encontrei justamente o oposto, compreende? Nada mais faz o menor sentido, tudo me aparece como um enorme vazio, e não pense você que o vazio ao qual me refiro é aquele vazio confortável, tranquilo, não. É o vazio da reflexão eterna, compreende? Imagine um espelho com a liberdade de observar o mundo e suas coisas, mas ao refletir, reflete o nada. Esta é minha condição, minha prisão, onde a verdade me é inacessível, onde sequer tenho o direito de acreditar em minhas próprias mentiras, e, se não consigo acreditar em minhas próprias mentiras, menos ainda seria possível acreditar na mentira alheia. Certa feita, não sei por que razão, perguntaram-me: quanto é um mais um? Respondi da seguinte forma: o que é um? E as pessoas caíram na risada.” José Ancéfalo deixou escapar um sorriso discreto de superioridade, afinal, sabia muito bem o que era um. Margarida perdeu o interesse pelo assunto e retirou-se. Aproveitando a pausa de seu interlocutor, José começa:
- Nunca te imaginei numa situação tão ruim. Imaginei você se tornando um conceituado professor, sei lá, de filosofia, por exemplo. Mas nunca numa situação como esta. Já pensou em procurar um psiquiatra?
- Já. Ele disse que sofro de hipercefalia crônica, e se eu não aumentasse a dose diária de televisão minha situação pioraria progressivamente.
- Mas o que é que causou este problema?- José pergunta demonstrando compaixão e solidariedade.
- Nem imagino. Este é o problema, se fosse possível, a mim, imaginar ou crer em alguma coisa, faria como você e o resto das pessoas: olharia uma coisa uma vez, imaginaria várias coisas, chegaria a uma conclusão sobre a coisa, acreditaria nessa conclusão e pronto! Da próxima vez que visse a coisa não seria necessário repetir o processo todo novamente. Mesmo que após a primeira análise a coisa tenha mudado completamente, aquela primeira bastaria, dispensando assim, análises e reflexões posteriores.
O Cérebro fez uma pausa, olhou para o chão e prosseguiu cabisbaixo:
-Por isso vim até aqui, para retornar ao lugar de onde nunca deveria ter saído.
- Seja mais claro. Pediu José ao Cérebro.
- Quero voltar a fazer parte de sua vida, compreende? O que tem o homem a ganhar com esta separação? Aceite minha proposta, permita a mim retornar.- Neste momento Margarida põe-se a ouvir novamente junto ao marido. O cérebro prossegue: Tem novamente a oportunidade de obter conhecimento, sabe que não deve negar.
- Já vi esse filme antes!- Diz margarida de repente - Você acha que a gente vai cair de novo nessa? Não, de jeito nenhum. Conheço a história de Adão e Eva.
Para a surpresa do Cérebro, José faz um sinal de consentimento com a cabeça e começa
-A Margarida tem razão, não posso aceitar sua proposta.
- Como não pode? Você deve aceitar!- Diz o Cérebro, indignado. – Estão sugerindo ser o próximo passo da evolução da espécie humana o Homo-Demens? Isto é um absurdo!
Margarida viu que a coisa estava ficando séria, e para tanto não foi necessário compreender o significado dos termos utilizados pelo Cérebro. Preocupada com isso ela tenta contornar a situação:
- Por favor, senhor Cérebro. Tente entender, já é tarde demais. Um relacionamento que não deu certo uma vez, jamais dará.
- Mas muita coisa mudou depois do acontecido, as circunstâncias agora são outras, o mundo agora é outro.
- Ah! Não me venha com essa!- Margarida perde a calma outra vez – Desde que o mundo é mundo ele muda, não vem com desculpinha não! O mundo continua o mesmo: sempre mudando. Você é que nunca deve ter prestado atenção. Onde já se viu? Faz a besteira depois põe a culpa no mundo porque o mundo roda...
- Calma meu amor- Neste momento José tenta acalmar a esposa. – deixa que eu falo com ele. Olha aqui senhor Cérebro, sua história me comoveu bastante, mas não dá pra ter você de volta não. Sabe, não me leve a mal, mas as coisas melhoraram muito depois que você foi embora. Quando vivíamos juntos, eu vivia triste e confuso, no entanto, achava que era uma coisa natural, sabe? Achava que aquela angústia toda fazia parte da natureza. Hoje percebo que não é bem assim, vou tentar explicar de outro jeito: Nunca precisei misturar antidepressivo na ração do Teobaldo. Nunca precisei levá-lo ao psiquiatra e tenho certeza de que ele não se suicidará. Tenho certeza que se você passasse a habitar uma galinha, em uma semana ela entraria em crise existencial e começaria a perguntar coisas do tipo: “Se as aves voam e eu sou uma ave, por que eu não vôo?”. Ou “Quem foi a primeira galinha a botar um ovo? De onde esta galinha veio?” ou então: “Por que os homens dão apenas o que comer às suas comidas? Por que não dão à elas também o direito a liberdade e dignidade?”. Enfim, a coitada da galinha não veria sentido algum no viver. Da mesma forma, meu respirar somente passou a fazer sentido após aquele espirro, sabe? Sei que é burrice desfazer-se de um cérebro quando se vive bem com ele, porém, é burrice maior ainda passar a ter um cérebro quando se vive bem sem ele.
O Cérebro permaneceu calado. Se pudesse voltar no tempo jamais escaparia pela via nasal de José Ancéfalo mas, infelizmente, o tempo era outra coisa complicada para o Cérebro.
-Tudo bem!- Disse finalmente o Cérebro- Embora não seja recomendável, a estupidez é um direito de todos.
- É engraçado- Margarida interfere novamente- Você abandona o pobre homem, se afasta por todo este tempo e vem agora reclamar dizendo que o homem é um imbecil. Por que será?
O Cérebro não responde, apenas levanta-se com nobreza e brio. Retira-se.

- Que sujeito inconveniente, onde já se viu?- Margarida põe-se a resmungar. José Ancéfalo por sua vez, dedica-se a tarefa de apreciar a imensa sensação de alívio.
O Cérebro deixa a casa de José Ancéfalo. José Ancéfalo tranca o portão. Entra em casa, senta-se ao lado da mulher, aciona alguns botões de seu controle remoto em busca de entretenimento. Encontra. Meia hora depois, dorme.

Cinco horas e meia da manhã seguinte. Hora de aprontarem-se para o trabalho, o alarme do relógio dispara. José Ancéfalo e Margarida levantam-se da cama. Tudo continua como sempre foi.

Estacionamento do Shopping

Posted: quarta-feira, 15 de abril de 2009 by Fabiano Fernandes Garcez in Marcadores: ,
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A história não é minha, ouvi de uma pessoa que a ouviu de outra. É o seguinte... Um cidadão vai até um shopping e fica por vinte e cinco minutos procurando uma vaga para estacionar o carro.
Até aí tudo bem, quantas vezes não fizemos isso? Mas o cidadão em questão ficou nervoso e resolveu ir embora, mas ao tentar sair é bloqueado pela cancela e aquela voz eletrônica lhe pede que pague o bilhete, ele se recusa, claro!
Aparecem alguns funcionários do estacionamento/Shopping, - nem sempre o estacionamento é do shopping e o shopping é do estacionamento -, ele explica a situação, mas é inútil a missão, porque os funcionários não são eletrônicos, porém agem como se fossem: “Ordem é ordem, senhor! Está aqui acima de vinte minutos estacionado tem que pagar”. Ele, nervoso, retruca: “Acontece, meu filho, que não estacionei, não porque não quis, porque não pude e se tivesse conseguido estacionar não resolveria sair vinte e cinco minutos depois".
Imaginem pagar por um serviço que em vinte e cinco minutos você ficou tentando usufruir e não conseguiu! Ele decide que ... se tinha que pagar, então usaria o serviço. Entra no carro e o estaciona bem na frente, assim de atravessado, da cancela e sai para suas compras. Nisso chegam mais funcionários, um gerente que não sei se do estacionamento ou do shopping e a gente curiosa.
Lógico que a situação foi resolvida de maneira atraente para ambos, - menos para aquela gente que assistia a cena sem assistir ninguém, - mas para nós, fica a reflexão: Já que o estacionamento é cobrado, não se pode colocar na entrada um aviso de quantidade de vagas disponíveis? Garanto que isso já desestimularia motoristas sem paciência ou com pressa, como quase sempre é o meu caso.

A crônica

Posted: by Fabiano Fernandes Garcez in Marcadores: ,
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Para dizer o que é crônica, começo dizendo o que ela não é. Não é uma notícia, nem uma reportagem, apesar de estar presente na imprensa e às vezes retratar acontecimentos diários e quase sempre ser escrita por jornalistas, mas também não é literatura, mesmo existindo livros de crônicas e ser escrita por muitos poetas e romancistas.
Você deve estar se perguntando: “Mas que raio, então, é uma crônica?” É um texto curto que geralmente é publicado por um jornal, escrita com uma linguagem simples, linguagem de dia-de-semana, – já diria o famigerado do Guimarães Rosa -, vira e mexe aparece com uma pergunta ou simulação de diálogo com o leitor. O cronista, o cara que escreve a crônica, se inspira em acontecimentos diários, presentes ou não na imprensa, mas ao fazer isso dá a ela um toque pessoal, apresenta um tema sob seu ângulo de visão singular, de uma forma leve, descontraída, por vezes até com uma pitadinha de fantasia, criticismo, ironia e por aí vai.
No Brasil, existem e já existiram ótimos cronistas, como por exemplo: Ferreira Gullar, Luís Fernando Veríssimo, Arnaldo Jabor, Carlos Heitor Cony, Mário Prata que escrevem hoje em dia em grandes jornais, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Sergio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, Nelson Rodrigues, Raquel de Queiroz e outros tantos que já atravessaram o rio, - como o grande poeta Thiago de Mello se refere àqueles que já nos deixaram. A crônica, por seu caráter espontâneo e quase oral é um texto adorado pelos brasileiros.
Enfim, a crônica é isso, fazer com que o leitor leia e se informe sobre algo, sem perceber, como o amigo leitor que chegou até esse último parágrafo fez, leu e se informou sobre esse gênero textual prazeroso de se ler e mais ainda, de escrever.

Duro Trabalho - Hans Magnus Enzemberger

Posted: quarta-feira, 1 de abril de 2009 by O Blog dos Poetas Vivos in Marcadores:
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impacientemente
em nome dos satisfeitos
desesperar

pacientemente
em nome dos desesperados
desesperar do desespero

impacientemente paciente
em nome dos inensináveis,
ensinar

De É Triste Viver de Humor

Posted: segunda-feira, 30 de março de 2009 by O Blog dos Poetas Vivos in
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A poesia contemporânea em debate

Posted: domingo, 29 de março de 2009 by Fabiano Fernandes Garcez in
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Fabiano Fernandes Garcez


É necessário, antes de tudo, a definição de poesia contemporânea. O que se chama aqui de contemporânea é, sobretudo, aquela feita após a terceira fase do modernismo (1945) até os dias de hoje. A poesia é arte e a função da arte é questionar a realidade, fazer refletir e desestabilizar, ou seja tirar-nos de nossa zona de conforto, diferente do entretenimento que acolhe, conforma, faz esquecer o indesejável da vida e do cotidiano. É a expressão da subjetividade por meio da linguagem verbal, ou seja, das palavras e tem o papel de humanizar o ser humano.
A poesia contemporânea é a reação da sensibilidade ao capitalismo de consumo que tira do homem moderno o individualismo, o torna anônimo, parte insignificante de uma grande massa consumidora. Cabe ao poeta dar ao homem comum a importância de ser único, incomparável e excepcional, oferece um novo olhar para a realidade, prega um novo comportamento desse homem, uma nova relação com o seu tempo, com o materialismo exacerbado e marcante em sua vida. A poesia contemporânea nos possibilita sentir, de forma verdadeira, o mundo e não apenas fazer parte dele como uma peça dentro de uma grande engrenagem. Olhar como, pensar como, ser, um outro que não nós, isso nós dá a sensação de completude e, ao mesmo tempo a percepção de sermos únicos e incomuns no mundo. A poesia nos liberta das garras e amarras do real racional e permite a transcendência do nosso corpo individual e físico para um corpo espiritual e coletivo, a poesia é, como diz Adélia Prado, uma manifestação religiosa. É, então, um constante exercício de reaprendizagem de novas possibilidades de ver um mesmo mundo.
Esteticamente, é quase impossível definir a poesia contemporânea porque ela é eclética, se apresenta de diferentes formas, pois o mundo hoje é assim, múltiplo e fragmentado, o homem moderno é, ao mesmo tempo, inúmeros e também um só em inúmeras partes. Mas dentre as várias vertentes da poesia contemporânea é possível estabelecer três principais:
A poesia descritiva: Dá ênfase no cenário objetivo, geralmente urbano, o poeta faz descrições das coisas, das pessoas e dos lugares que o cercam, talvez em uma busca de localização e inserção no mundo. É o tipo de poesia muito comum na internet.
A poesia hermética: Dá voz ao inconsciente, visando dizer aquilo que ninguém sabia que se precisava dizer, isso está nas entrelinhas no texto. É a mais apreciada pelos críticos, uma vez que é mais difícil de entendimento por utilizar metáforas incomuns.
A poesia memorialista: O saudosismo foi um movimento estético da literatura portuguesa no início do século XX, a saudade é considerada um traço marcante da alma portuguesa, talvez por nossa herança esse tipo de poesia é ainda muito prestigiada pelo grande público. O texto resgata o passado de forma nostálgica, mas com um novo olhar sobre ele, renega o presente e o futuro, deixando a sensação de que tudo no passado era melhor.
O que se pode afirmar é que a matéria da poesia contemporânea é o cotidiano, o comum, o ordinário, é a desmistificação dos mitos e a mitificação da experiência pessoal. Há um grande problema na poesia brasileira, é que ela ainda vive em pequenos grupos de amigos, ainda não chegou ao grande público, há poucas, mais do que antes é verdade, mas ainda poucas, discussões e encontros sobre poesia. E as discussões que existem se referem a uma poesia elitista, cheia de citações e referências apenas compreensível a um público seleto, letrado e bem alimentado.
Porém a poesia por seu caráter, edificante e revolucionário, de questionar a realidade tem que chegar às calçadas, às ruas, aos guetos, enfim a todos, sem exceção, por que quando questionamos a nossa realidade racional damos vozes a nossa irracionalidade emocional e inconsciente, que é o que precisamos para entender que o ser humano necessita de algo bem mais caro do que o dinheiro pode comprar.