Soneto da Sorte

Posted: quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010 by O Blog dos Poetas Vivos in Marcadores:
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Em mim há tanto orgulho e tanta pena
Que eu já nem sei qual lado é o que mais pesa
De um lado a sorte, alheia, me despreza
De outro o azar afoito me condena

Venci a maratona dos infaustos
não há no mundo homem mais cagado
se houvesse outro, o deus do azar, coitado,
de tanto trabalhar, morria exausto

Mas se foder na vida às vezes dói
Afeta o equilíbrio e a auto-estima
Nos faz pensar que não somos heróis

Até que alguma coisa nos anima
Nos tira de baixo do que corrói
E põe-nos a tomar no cú por cima.

Os diálogos que ainda restam

Posted: quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010 by Fabiano Fernandes Garcez in Marcadores:
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Eryck Magalhães
Ao debruçar-se sobre a história literária e estudar minuciosamente toda a sua trajetória, deparamo-nos com uma imensa gama de textos, temas e estilos. Diante disso, o impasse: Ainda restam diálogos? Ainda há o que contar? O poeta Fabiano Fernandes Garcez, através de seus belos versos, mostra que sim, e o faz com muita propriedade. Em seus “Diálogos que ainda restam”,poema a poema, o autor revela a capacidade que a poesia tem de se reinventar.
No poema “Diálogos”, o poeta aborda a banalização do uso das palavras, que por ora, parecem vazias em si mesmas: “Não sinto a profundidade / em todos os diálogos”. O bucolismo é outra vertente que também se faz presente, principalmente no belíssimo poema “Minha preferida” o qual nos remete aos poemas árcades. Porém, o eu-lírico, apesar de se mostrar saudosista, faz referência a seu tempo: “Ah! Colhe flores / Hoje ninguém mais faz isso / Colhe flores!”. A inquietude do homem contemporâneo consigo mesmo já é outra temática deste poeta multifacetado, e para abordá-la, o autor lança mão da intertextualidade nos poemas “Eu não sou eu” e “Sou nada”. Já no poema “Mulher”, a figura feminina é literalmente divinizada: “Para mim, Deus é mulher”. Entretanto, um erotismo que se mostra inocente permeia nos vãos dos versos: “de colo e seios fartos, para nos confortar”. Em uma série de poemas sobre “As Lembranças de Minha Avó”, o poeta faz sua reverência à importância que as mães de nossas mães tem em nossas vidas.
Sem mais delongas, que muitos outros diálogos ainda restem e que ecoem nos versos deste poeta.

Vale em Poesia entrevista o poeta Fabiano Fernandes Garcez

Posted: quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010 by Fabiano Fernandes Garcez in Marcadores:
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Vale em Poesia – Qual a importância da poesia, da música, da dança, do teatro, do cinema, das artes plásticas, enfim, da arte na sua vida?

Fabiano Fernandes Garcez - A arte é muito importante na vida de todos, é pela arte que sentimos o que não é sentido, é pela arte que tornamos consciente aquilo que nos é inconsciente. Gosto de todas as manifestações artísticas, principalmente a literatura, o cinema, as artes plásticas e o teatro, não tinha muita afinidade com a dança, até que me casei com uma professora de dança e coreógrafa, então passei a prestar mais atenção e pude perceber como é importante para o espírito humano a manifestação corporal, ainda não aprendi a dançar, mas já passei a apreciá-la.


VP - Você acredita que o jovem de hoje valoriza algumas manifestações artísticas como a poesia ou a literatura, o teatro, a música clássica e as artes plásticas? Por quê?

FFGNão. Devido a minha profissão, de professor, percebo que tudo isso é muito distante dos jovens, a não ser a música comercial e o cinema de entretenimento, porém percebo que apresentando essas outras manifestações artísticas a eles e, principalmente, guiando seus olhares a coisa muda de figura, mas de primeira eles não gostam e até criticam aquilo que não conhecem muito, cabe a nós fazer o papel de guia, de cicerone para eles. Certa vez, quando trabalhei em um projeto social, fiz uma atividade com a música Meu Grui do Chico, a meninada toda torceu o nariz, depois fiz uma breve explanação sobre a letra, então um menino me disse que não gostava de Chico Buarque, mas essa música era legal, perguntei quais outras músicas do Chico ele conhecia e ele me respondeu: Só essa!


VP – Você acha que uma utilização mais efetiva da poesia, da música, das artes plásticas, do cinema, enfim, da arte no processo educacional enalteceria a sensibilidade das pessoas, de modo a fazer com que as pessoas se tornem pessoas melhores?

FFG -  Claro que sim! Lembro-me de uma entrevista de Ferreira Gullar em que ele afirma mais ou menos o seguinte: Você pode viver bem, mas se você conhece Drummond você vive melhor ainda! Só por meio da arte que o ser humano toma contato com a humanidade que nesses tempos anda desaparecida de todos os seres. Pois quem vê, por foto mesmo, o teto da Capela Sistina, ou o Davi de Michelangelo, quem assiste a um filme como Cidadão Kane, Peixe Grande ou A Vila, só para citar três, quem lê os versos de Ferreira Gullar, Adélia Prado, Bandeira, Vinicius, ou quaisquer outras das inúmeras manifestações do gênio humano, não pode ficar sendo a mesma pessoa que era antes.

VP – Quem escreve, escreve sempre para ser lido, por muitos ou por poucos, mas para ser lido. Quem seriam seus leitores?

FFG -  Sempre escrevi para as pessoas comuns, na verdade a poesia elitista nunca me tocou, acho que o poeta tem ser complexo na mensagem, não na forma ou no vocabulário, gostaria que as pessoas simples lessem meus poemas, as lavadeiras, os porteiros, os motoristas, é para eles que escrevo, creio eu que são eles que necessitam, não da minha, mas de qualquer poesia. Lembro de uma entrevista, não sei com quem, que dizia que Pablo Neruda era considerado o maior poeta do Chile, porque ele escrevia para os pescadores, resolvi que era isso que eu queria para o meu texto.

VP – Você acompanha o atual panorama da poesia contemporânea brasileira?

FFG -  Sim, tento me manter atento aos poetas de meu tempo, vejo com bons olhos a poesia contemporânea, existem ótimos poetas novos, digamos dos anos 90 para cá, de cabeça posso citar alguns que gosto muito: Tonho França, César Magalhães Borges, Fábio Weintraub, Tarso de Melo, Pádua Fernandes, Claudio Daniel e Claudia Roquette-Pinto, esses eu acompanho já algum tempo, mas além desses existem outro menos conhecidos, são meus amigos e escrevem muito bem: Noemi Moura, Maria de Lourdes Alba, Cleber Bianchi, Jurandir Rodrigues. Além de tudo isso, existem poetas que estão produzindo muito, mas apenas em Blogs e ainda não publicaram livro algum.

VP - Como é a feitura de seus poemas? Tem algum método especial de construção?

FFG -  Não. Alguns escrevo de uma vez, eles veem prontos, outros escrevo apenas um verso e depois de muito tempo faço o resto, às vezes escrevo apenas idéias e desenvolvo o poema a partir delas, ou então escrevo como prosa e transformo em poema, no ano passado escrevi uma série de 80 poemas em apenas duas semanas, depois passei a cortá-los, modificá-los e excluí-los e sobraram 50. Às vezes escrevo direto no computador, às vezes faço rascunhos em papéis, meu único método de escrita é não ter método nenhum.

VP – Como foi a concepção do livro?

FFG -  Diálogos que ainda restam na verdade não era um livro, quase todos os poemas entrariam em Poesia se é que há, o meu primeiro, nele estão poemas que escrevi desde meus 14 anos (anos 90) até o ano de 2008, mas a quantidade de páginas ficou muito grande, quase 200, então pensei melhor e publiquei primeiramente apenas os poemas mais antigos, que são os estão em Poesia... . Depois relendo os poemas que sobraram, percebi que eles tinham um tema central, mesmo sendo tão diferentes entre si, achei que eles se referiam à comunicação ou a falta dela, então passei a ler e relê-los e dividi-los em capítulos, aí me veio o nome: Diálogos que ainda restam, quando o livro ficou pronto, pedi auxílio ao grande poeta César Magalhães Borges, que foi meu professor na universidade e depois disso passei a ter amizade, e ele me ajudou, com alguns pitacos poéticos a dar um tom mais lírico, diferente de Poesia... , então passei a mandar o livro para algumas editoras. Entrei em contato com outro amigo, o maior poeta de Guará, Tonho França, para que ele me recomendasse para sua editora, a Multifoco, foi então que ele me disse que estava abrindo um selo por essa editora e me pediu o material, mandei, ele leu e gostou. Assim surgiram Diálogos que ainda restam.

SONETO AO MEU AMOR

Posted: by Fabiano Fernandes Garcez in Marcadores:
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Se amor é um fogo ou é uma ferida
Ou apenas um querer bruto e fero
Ou então uma prisão de mãos regidas
Amo-te total bicho mistério

Amor meu fecha a porta escura
Amamo-nos tranqüilos ao rio
Tu, branco cisne como candura
Estendo-te a mão laço de fio

Prende-me o amor, não é dos tolos
Nem dos sábios; é apenas o teu
Camões, Bocage, Garret e Pessoa

Neruda e Castro Alves, Vinicius
Tomei versos, palavras à toa
Cantar, cantei a ti: Meu amor e vício

Diálogos que ainda restam,  p.39

O VIOLÃO

Posted: terça-feira, 16 de fevereiro de 2010 by Fabiano Fernandes Garcez in Marcadores:
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Pego o violão

tiro a capa
tiro a poeira

O violão branco
de madeira

Passo a mão em sua cintura
(tem corpo de mulher)
Poso para foto
Por posar

Pois não toco
nunca toquei

Ele sempre me tocou
com seu som
nas tardes de cantoria
nas noites de serenatas que eu assistia
nas manhãs que ele me acordava e eu não queria

Penso em fazer soar suas cordas,
um acorde qualquer,
não faço

Pois não toco
Nunca toquei

O violão já trouxe melodia
alegria e até poesia
Hoje não toca mais 

Diálogos que ainda restam  p.23

EU NÃO SOU EU

Posted: quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010 by Fabiano Fernandes Garcez in Marcadores:
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Eu não sou eu, sou outro
E outro que não o outro, que não eu
Eu sou outro e outro e
outros tantos e eu

Se sou eu que é outro
o eu que sou também não sou eu
Com tantos eu, outro e outros eus,
como posso olhar algo e dizer: isso é meu?

Como pode ser meu,
se o eu que sou não sou eu?
Quando eu digo meu,
o eu pode estar se referindo ao meu que é do outro
o outro que não sou eu,
então, esse algo é seu!

Mas se sou eu e outro
o outro também sou eu
Aquilo que é seu é meu!

Eu Fabiano, Fernando, Carlos
que diferença faz, se todos os outros sou eu

Eu sou o outro e os outros
sem deixar de ser eu
      sou eu e sou outro
e os outros sou eu

Mas os outros que não o outro,
que não os outros outros
que não eu, também sou eu?

Diálogos que ainda restam p. 43

Um tempo que escorre aos olhos

Posted: quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010 by Fabiano Fernandes Garcez in Marcadores: ,
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Por Fabiano Fernandes Garcez

            Em À medida dos Tempos, livro de estréia de Clebber Bianchi, percebe-se que no decorrer da obra o poeta amadurece seu canto, amplia suas impressões e expressões, suas visões e percepções de um tempo impossível de se aprisionar, mesmo depois de capturado pelo retrato fotográfico, restando ao olhar lírico apenas a nostalgia de um tempo tardio, mesmo que recente:    
Do peito,
escorre a chama suja dos tempos.
O olhar é simples, singelo,
apenas os tempos são capazes de testemunhá-lo.
O sorriso amarelou no retrato
e a fala muda enalteceu a lembrança.
Somente o sonho sobreviveu.
E a saudade vive nas tardes,
sob as folhas das mangueiras,
a cada lágrima que cai.
           
            Clebber nos dá mosta do labor poético que preza a fenomenologia do olhar, olhar este que se volta para as coisas sem importância, coisas à toa e, por isso mesmo, são de grande valia e merecem ser recordadas:
Haverá um tempo
em que o passado estará exposto
no reflexo das cores orvalhadas
das flores do jardim da janela dos fundos.
As goteiras farão as rimas dos versos
que contarão a história.
O silêncio que havia na casa grande
havia entre os odores do curral.
O galo que há pouco cantou
propiciou reminiscências,
que os roncos dos motores e buzinas,
além do apitar cotidiano da fábrica, apagaram.

                                                                       RETRATOS

            A observação subjetiva das coisas simples, singelas, ganha um forte aliado, sua sintaxe também simples, sem afetações linguísticas de um discurso meramente formalista, que pouco comunica. O discurso poético de Clebber comunica bastante, para isso o campo léxico de À medida dos tempos é cotidiano, comum, no entanto é nessa simplicidade de dizer que é dito muito sobre a solidão, os sonhos infantis e até sobre o fato de se perder as palavras, restando apenas a contemplação sensorial do momento:     
Daqui de cima tudo é solitário.
Viver acima
é encontrar-se surdamente
falando para si mesmo.
Esta é a minha casa da árvore (sonho de criança)
financiada em duzentos e quarenta meses, além de alienada.

Quando enlouqueço e grito lá para baixo,
somente as buzinas respondem.
Em seguida, as palavras não me vêm.
Apenas o pio da andorinha,
um pio, um só.
Apenas uma andorinha,
uma andorinha apenas.
                                                                       UMA ANDORINHA
           
            Cleber vale-se de alguns recursos poéticos, apesar de sua linguagem acessível, como por exemplo, paradoxos e antíteses:
O tempo é permissivo
aos contentamentos descontentes.
Vejo que tudo acontece ao mesmo tempo agora
no cenário dos dias na cidade...
                                                                       PESARES DO TEMPO

Hoje, o tempo me veio solteiro,
em uma noite daquelas em que a melhor companhia era a
solidão.
                                                                       EU INTRA
            além disso, em alguns poemas vê-se um jogo com os diferentes valores semânticos de uma mesma palavra, como em MÁSCARA:
Um ser sem sentir-se
um sentir-se sem ser.
            porém é nas belíssimas imagens poéticas que Clebber Bianchi se mostra mais criativo:
Enquanto os sapos coaxam de sede,
O sol atravessa a pele da terra,
e meus ombros são minha camada de ozônio.
                                                                       DESALINHO

Cansei de respirar uma felicidade esbaforida,
cansada de se engasgar no soluço sórdido,
numa exatidão sem nexo e triste de alma.
(...)
Bastou-me um santo
e ajoelhei-me sobre as cinzas carbonizadas do meu consciente.
                                                                       DILATEM, PUPILAS!

            O poeta também se utiliza de alguns recursos sonoros que fazem com que os seus poemas ganhem em musicalidade e ecoem em nossos ouvidos. Um desses recursos, é o eco fonético, ou seja, aproximação de palavras semelhantes sonoramente:
Eu era um descaso do acaso,
angariado na contramão de uma grande avenida
Os brilhos dos olhos lagrimantes de saudade
de um tempo escorrido nos relógios
refletiam a esperança do passado,
apagada na realidade de um presente sério.
                                                                       TEMPO DE REZA

            Outro recurso utilizado pelo poeta é a onomatopéia:
O relógio tinha que tá, tinha que tá
mas não tá.
(esta foi a única coisa que o tempo parou!)
                                                                       MANTO NEGRO

             Clebber mostra em seus versos, não raro, a influência de Tonho França, e faz uma homenagem à altura do poeta de Guaratinguetá em CHARUTO CUBANO:
Uma lágrima seca escorreu-me de canto
e o canto do pintassilgo emudeceu na gaiola.
Minha cachaça perdeu o gosto quente,
exposta ao sol dos dias.
Mesmo uma pimenta aberta no prato
caçoava minha coragem.
Senti desconforto
e, sob meus pés,
o vácuo das manhãs sem sal provocava saudades.
É contínua a direção dos ventos,
segundo os sonhos,
seguindo sempre somente e só...

Os apoios que me sustentam
são espinhos tristes, sanções expressionistas,
cenários de Van Gogh.
Meu peito dilatado
ressalva as atitudes corriqueiras nas janelas
temperadas de línguas.

E sobre a rede ...
... e sobre a rede,
somente um legítimo charuto cubano
fazia-me companhia,
e entre um trago e outro
trago saudades.
Ao fundo,
solos de blues...
Solos de blues,
à tarde.

As acácias choravam suas perdas,
e as folhas caíam como eu,
solitariamente...

            Outro destaque do livro é OLHOS FECHADOS, poema com uma vertente ecológica e, dado aos problemas ambientais, quem sabe, profético:
A culpa é nossa!
Uma culpa com a imensidão do verso,
do céu-fumaça, estradas-pet, sertão-papel. Culpa tamanha!
O sonho é esperança contida no escorrer das águas nas sarje­tas,
nas mãos atadas dos pobres de espírito,
no papel de bala que perfurou o vento
e não pesou sobre a mente poluída.

É o início do fim. (...)

            Le Goff em História e Memória diz:
“a memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia”.
Com base nessa afirmação, só resta encerrar a resenha com os belíssimos versos de SEXO DOS TEMPOS, sem antes render as devidas congratulações ao poeta que surge à tempo:

Sou atemporal.
Minhas memórias não morrerão minhas



AS CHAVES

Posted: by Fabiano Fernandes Garcez in Marcadores:
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Tiro do bolso as chaves
para abrir a porta
que não há mais

Volto-me para o corredor
de onde saí
tento refazer meus passos
a procura da saída

Não vejo os quartos
onde nos encontramos,
         nos amamos
as fotos que tiramos,
         nossos sorrisos

Não vejo os objetos, os quadros, os vasos
que enfeitavam a sala de estar
já não vejo nem mesmo o corredor
onde deveria estar

As chaves ...
Passo as mãos no bolso...
Não as tenho mais...

Procuro a porta
Procuro a saída
Procuro um luz no fim do túnel,
mas não encontro o interruptor,
nem uma vela

O ar ficou pesado,
sinto todo peso em meus ombros
O ar ficou pesado
Um peso do passado

Finalmente, encontro uma porta,
que deve ser minha saída
que deve fechar minha ferida
Mas ....
Não encontro as chaves




Diálogos que ainda restam p. 21

Um trago sozinho à tarde

Posted: sábado, 6 de fevereiro de 2010 by Fabiano Fernandes Garcez in Marcadores: ,
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Ernest Fischer, em A necessidade da arte, afirma:
    Em todo poeta existe certa nostalgia de uma linguagem “mágica”, original.
Em O Bebedor de Auroras, mais novo trabalho do premiadíssimo poeta Tonho França nos brinda com magia, lírica íntima e sintaxe peculiar para resgatar do mundo contemporâneo, a cada dia repleto de surpresas, armadilhas e contradições, a humanidade perdida.
A experiência individual do eu-poético, traz ao livro um tom de saudade e de desencanto, talvez contaminado pelo sentimento de desencaixe, como se pode notar em:

aprendi a ver através das margaridas, mas não entendo mais o
[olhar dos homens
(...)
(Tardes Artificiais)

ou:
A toda hora
A todo momento
Estou fora ou dentro?
(Muros)

A pena de Tonho corre sobre o fazer poético, em inúmeros poemas se encontram as palavras: versos, poesia e poeta, isto em consequência a reclusão no presente de eu-poético fragilizado pelas incertezas do futuro e as recordações do passado:

Meus olhos, embora cansados,
Pressentem o que não podem ver
Aprenderam com o meu silêncio
– rituais e rotinas de solidão –
Meus instintos guardam a memória dos amores
E de tudo o que me é caro e que meu coração...
Já não suportaria.

E de nada me adiantam, agora, lembranças,
Penitências, alegrias ou arrependimentos
¬Estou recluso nos versos –
E nas minhas dores, culpas
Nos enfrentamentos em calmos e intermináveis silêncios
Abertos, vulneráveis, extremamente íntimos
E despidos de profecias, santos e defesas,

Num encontro definitivo, conclusivo, coeso

Do qual nem poeta, nem poesia, saem ilesos.

(Autorretrato (Diálogo do último dia))


O sotaque poético de Tonho França permanece intacto, maneira singular de construção semântica, que aproveita fragmentos de versos anteriores para dar aos posteriores outras significações:

As ladeiras de pedra
Os homens a seguir o destino em procissão
As ladeiras de pedra e os homens a segui
As ladeiras de pedra tentam a remissão:
Os homens de pedra a seguir vão,
homens de pedra a seguir
os homens, em vão.
(...)
(Procissão)


Na construção sintática, menos recorrente nesta obra é verdade, Tonho França também é mestre, trabalha duas orações coordenadas, porém com o segundo elemento do paralelismo inusitado:

Meus olhos guardam o segredo da morte
Suas mãos enrijecidas em pétalas de mármore-rosa
Colhiam maças e notas musicais.
(Canto III)


Mares... destoa do resto do livro, o uso constante da mesma rima dá ao poema um ritmo arcaico, lembrando muito a poesia do século XIII e XIX:

Os barcos deixam o cais,
Aventuram-se e deixam o cais,
Nas ondas inseguras, deixam o cais,
Levando as desventuras, deixam o cais,
Nas noites tão escuras, deixam o cais,
Deslizam entre espumas e corais,
(...)


Ainda na linguagem que o poeta utiliza para suas auroras o destaque fica por conta de Metrópole:
Pivete no semáforo
(vida?)
Vende balas
(perdidas)


o uso dos parênteses dá ao poema outras possibilidades de interpretação, pode-se ler só os termos que estão fora deles, apenas os que estão dentro, ou ainda embaralhando-os.
Em Vida vista pela janela (cenas de um tempo sem sentido), um dos melhores poemas do livro, Tonho nos ensina:

É preciso nos lavar de nós mesmos (..)

Em uma sociedade que é regida pelo olhar mercadológico, o olhar sensorial do eu-poético recai sobre os homens desumanizados, então resta, apenas, concordar com as palavras do poeta:

Já aprendi a sobreviver nas esquinas definitivas
E sinto como é pesada a franqueza
Escrevo abaixo da “linha da pobreza”
Dentro dos olhos e com muita dor
Mas não me iludo, não me engano
Meus versos são pelos seres humanos
A poesia é para sermos humanos
(...)
(Dia a dia)

A voz auscultada das páginas traz a entonação do entardecer, apesar do título constar como auroras, a palavra tarde é recorrente em muitos de seus versos, assim como ecos de um homem, em uma metrópole, solitário à espera de alguém para, quem sabe, um trago de poesia.
O Bebedor de Auroras é um bálsamo contra a banalização do mundo contemporâneo que está cada vez mais e mais dezumano e alienante.


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Posted: quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010 by O Blog dos Poetas Vivos in
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