Jhonson and Marry Jane

Posted: domingo, 18 de janeiro de 2009 by O Blog dos Poetas Vivos in Marcadores:
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Era uma vez Jhonson and Marry Jane. Estes eram dois irmãos saudáveis de saúde que faziam parte de uma família aparentemente normal- não eram o melhor exemplo de harmonia, mas também nunca foram ao Ratinho pedir d.n.a, ou à qualquer outro programa do tipo “João Cléber” se expor em troca de sub-existencia..
Continuando, o pai era um humilde ex- operário que certa vez estava andando de bicicreta pra ir na casa de sua irmã Gorete comer uns crocrete, e distraído mascrando chicrete sofreu um acidente não muito grave – mas teve que amputar um dedinho na mão esquerda.Na época, isso foi o máximo pra ele, desempregado, pode fazer uns couver do Lula em uns comício por aí, o povo adorava ... bons tempos aqueles !
Bem, a mãe biológica batera as botas há alguns anos. E como todo macho precisa de uma fêmea, ele arranjou uma outra, que não é assim uma Brastemp, mas... cá entre nós, o titulo MÁ-drasta já causava um mau aspecto – como um ex-presidiário procurando emprego, um negro num carro importado, ou um morador do Cingapura abrindo conta no Unibanco.NÁO, imagina, não é questão de preconceito, mas a sociedade é assim mesmo e nem tentem mudar – se não se pode vencê-los junte-se a eles !
OK. Vamos falar de Jhonson and Marry Jane. Eles eram pré-adolescentes (aquelas crianças que têm desejo sexual aflorado de tanto assistirem novelas e Big Brother), e tinham acabado de sofrer um grande trauma em suas vidas – descobriram toda verdade!!! Sim, aquela loira simpática e graciosa, mãe de Sacha, ex de Pelé, Senna e Marlene Mattos, havia se corrompido no passado, vendendo seus princípios e seu corpo, para essas revistinhas de quinta categoria. Jhonson não se conformara e acredita até hoje que tudo foi uma montagem daquele site vagabundo, tudo intriga da oposição.
- Maldita Internet! disse Jhonson.
- Maldita Xuxa. retrucou Marry Jane.
- Mas que belos peitos - complementou o garoto, tentando superar a
situação. E a partir desse dia eles começaram a ter uma nova visão do mundo.
Certa vez, a madrasta que era anarquista e não agüentava mais ouvir Jhonson and Marry Jane discutindo suas divergências sobre a questão das reformas, da ALCA e do FMI- put* que pariu , ela não agüentava mais.Então foi com os dois até a Praça da Sé, disse que ia comprar um dog mais um suco citrus por um real e se mandou. Mas os dois eram bem espertinhos e conseguiram voltar pra casa. Ao chegarem, fizeram o balanço da atividade e concluíram que mais valia ficar na Praça onde não teriam que torcer para o time do pai deles, nem comer quiabo e ir dormir quando não se está com sono.
- Meu irmão Jhonson, vamos fundar lá uma sociedade alternativa.
(realmente ela estava muito influenciada por um cd do Raul Seixas).
- Concordo, aquele lugar é divertido, cheio de crianças que ficam rindo à toa felizes pra caramba.
- É porque eles cheiram cola.
- Ah, e daí ?
- Verdade, isso é apenas uma forma alternativa de encontrar a felicidade e a paz interior. Eu acho que vai ser uma grande experiência de vida para nós, num futuro próximo poderemos dar palestras, publicar livros ou até mesmo dar entrevistas na tv ...
- Só se for na Rede Cultura minha amiga ...
- Ótimo !!! – e assim partiram.
A forma dinâmica e sensata de Jhonson and Mary Jane pensarem era tamanha, que os dois iam brincar de ser João e Maria e jogar algumas migalhas de pão pelo caminho, mas desistiram da idéia .
- Jhonson, não faça isso, você é louco? A principal meta do país é erradicar a fome ...
- Ora, não seja tão extremista, eu vou erradicar a fome dos passarinhos.
- Não têm passarinhos aqui, só pombos cheios de doenças !
- Ah !!!
A noite chega e traz com ela medo e inseguranças ...
- Não se preocupe, eu estou aqui para te proteger Marry Jane.
- Não precisa, eu sou moderna e auto suficiente. Não tenho medo de nada, só do imperialismo norte americano nos deixar em condições mais deploráveis do que já estamos.
- Marry , acho que você está se tornando muito pró-revolucionaria. Pense bem, o que seria da gente sem o Mc e a Coca-Cola ?
- Seriamos felizes e saudáveis.
- Eu sou saudável.
- Não é não!!! Sua mente está contaminada com a dominação cultural alheia.
- Ah?
- Sem contar a opressão política e econômica. Sabe irmão, até hoje eu não engoli aquele boicote ao nosso café ...
- What ?
- Fock Jhonson. Do you don’t understand nothing if I say ?
- Understand I understand …mas você tem que melhorar um porquinho esse sotaque, you can do it ?
Aquela noite foi uma lástima para Marry Jane, com fome, frio e ainda tendo que falar no idioma do inimigo.Well, tudo pela diplomacia.
Para Jhonson também não foi fácil, aquele ambiente era muito hostil. Tá certo que ele não nascera em berço de ouro, mas quando bebê, teve seu próprio bercinho comprado no crediário. Aquela decadência social era uma verdadeira barbárie. O pior de tudo foi quando sua irmã se juntou na gentalha, em volta de um violão, e começou a chorar umas letras de MPB.
- “O povo foge da ignorância, apesar de viver tão perto dela ”(...) “Brasil, mostra tua cara, quero ver quem paga pra gente ficar assim” ...
A noite foi longa ... De repente, adivinhem o que eles encontraram ?
(não foi o Osama Bin Laden, nem Barack Obama, tentem mais uma vez) .
- Não acredito no que estou vendo Jhonson, olha lá: uma casa feita inteiramente de material especializado, cristalizado com açúcar, coberto com chocolate, caramelo e varias outras tentações apetitosas.
- Nossa, o que a tecnologia pode fazer, né ? E olha que moça bonita ali na frente, parece com a Xuxa.
- Não se iluda garoto, é apenas uma fulana cheia de plásticas, lipo e botox !
- Não me importo, vamos pedir um pedaço do telhado de waffer pra ela ?
- Eu odeio essa coisa de ficar com as migalhas do que o sistema me deixa, mas eu estou com tanta fome ...
- Então vê se usa desta ultra capacidade de comunicação nativa, típica das fêmeas de nossa espécie.
- Que- riii – dah, que casa liiin-dah!!! Nossa o IPTU deve ser altíssimo, mas você sabia que ao ajudar crianças carentes como nós, você pode constar na sua declaração de imposto e fazer negócio com o Estado assistencialista ?
- Ora fofinhos, entrem. Eu amo crianças carentes.
- Estou com medo Jhonson, isto está me parecendo uma ONG de fachada onde rola muita lavagem de dinheiro ....
- Não se preocupe Marry, ela só deve ser pedófila. Se acontecer alguma coisa a gente chama o “Cidade Alerta” e vende uma reportagem.Se não acontecer nada, a gente processa do mesmo jeito e vê se consegue dinheiro e fama ....
- Ora anjinhos, quem cochicha o rabo espicha, há há há!Entrem, vocês podem comer pudins, bolos , gelatinas, sorvetes, o que quiserem ...
- Moça, não rola um arroz e feijão ?
- Você não gosta de docinhos, menininho ?
- Mas se eu comer muito docinho, eu vou ficar gordinho e vai estragar os meus dentinhos.
- Mas é tudo light.É tudo muito nutritivo enriquecido com vitaminas, proteínas, carboidratos, fero, cálcio ... e ainda deixam os dentes branquinhos porque ...
- O QUE ? – disse Marry Jane- enfurecida com a propaganda enganosa.Eu sabia que você era uma assistente de vendas disfarçada, e que está querendo nos empurrar seus produtos industrializados, cheios de conservantes e outras porcarias químicas que vão nos causar câncer dentro de alguns anos !!!
Tomados de grande ira, eles queimaram-na viva com requintes de crueldade.
- Oh, o que fizemos Mary Jane, o que fizemos ?!?
- Calma, a gente fica no máximo até os 18 anos na Febem e já era.
- Só que eu sou o caçula, ahhhhhhhhh!
Foi exatamente nesse momento do dialogo que acabou o efeito da cola sob essas mentes jovens recém transviadas.
- Ah, o que aconteceu ?
- What ? Why ? How ?
É, eles estavam drogados e maltrapilhos ali na Praça. Os dois fizeram um tratado de que NUNCA mais iriam usar drogas ou discutir assuntos políticos. Voltaram para casa e levaram uma surra.
Porém, dentro de alguns anos Jhonson se tornou viciado.Passou por algumas clínicas para tentar se restabelecer.Atualmente ele está alienado como sempre, mas usuário só por hob.Investiu na carreira de modelo e está realizado e famosérrimo com um chavão que todos conhecem “Qué pagá quanto ? ”
Já Marry Jane se converteu de vez ao socialismo e milita incansavelmente em atos, protestos, passeatas... Atua também na área da educação e comunicação e sua principal meta é construir uma emissora comunitária que desmascare toda essa patifaria de mídia.
E os dois viveram ... viverão para sempre até morrer.
E parem, por favor, de acreditar em contos de fada.

Roberta Villa

Verniz

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Minha insana vaidade cheirava a verniz.
Quis fechar meus olhos, então, ver se a dor seria menor.
Fazia noite vazia. Eu estava só olhando a mim mesmo. Mas transgredi toda prisão ao perceber em volta tantas pessoas também solitárias observando qualquer lugar no tempo.Estava frio.A cena iluminada por velas tristes que cuspiam cera quente, o quente que arde, mas, inútil para aquecer.
A frente um caixão. O caixão de madeira envernizada luzente, matéria muito viva. Luzente com corpo morto em si.
Todos calados choravam, mas não juntos, cada qual com seu motivo particular. No externo constituíam-se como coro uníssono, mas no íntimo são instrumentos com timbres extremamente singulares. Pareciam não estremecer ao compor o canto mudo; e os óculos pretos combinando com a cor do traje de luto causavam cegueira endêmica. Até perfeitos e elegantes: traje de luto, óculos e choro contido. No entanto, aquele que prestasse, qualquer pouca atenção, perguntar-se-ia pra que tanta elegância. Todos afinados com minuciosa técnica, não havia quem fosse capaz de tentar soluço menos grave ou gemido mais agudo.
Observei aflito o brilho do caixão.
Não houve desespero descabelado, alguém disposto a ir junto. Na hora do enterro, não imaginava como seria, quem faria força suada e mal cheirosa para sepultar o que já está inerte?
Fiquei ali parado embora quisesse encontrar o maestro da orquestra, temia tropeçar entre os cegos. Aposto que acabariam, cada qual numa estação da vida, a pedir esmolas.
O caixão no centro, a morte ali, destaque.
A vaidade era o verniz.
Começava a entender todos os significados, os desejos, o último abraço, o adeus; e também os códigos de recomeço, descanso, descaso ou o encontro com Deus. Mas, respondam, por favor, quem morre a morte oposta?
Silenciosamente cada qual fazia seu próprio velório. Individualmente cada ser, seu próprio centro. Em todo este, não sabia onde estava minha posição – mas iria descobri-la ao enxergar para além da sombra angular de meu nariz.
Pois eis que tive pressentimento laico, sentia-me mais do que mero instrumento de velório... porque quebrei a solidão olhando em volta... agora sei exatamente: sou o caixão!
Sim, vivo - luzente por fora, e dentro, quanta matéria morta. Ficava ali como a noite fria e a vela chorosa - queima a pele com sua lágrima, tem luz tão fraca, irritante, que mais faz sombra do que ilumina. E as flores? Aquelas belas flores estranhas sem cheiro, enfeitavam a ausência da vida. Belas, enfim, em vão.
Morro hoje com saldo incalculável das vezes que fui enfeite no velório alheio. E quais serão os próximos a se enterrarem em si próprios agonizando o corpo com a matança da alma? Serás tu, ou quiçá teu vizinho? Basta abrir a porta de casa, há senil massa eufórica de velórios indo aos bancos, pegando ônibus, fazendo compras, entre tantas outras coisas andam deprimidos, pesados.
Quis fechar meus olhos, ver se a dor seria menor, mas doeu muito quando olhei para mim. Então, os abri seguindo a luz e quando tornei a realidade percebi que estava absurdamente –só- olhando para o espelho. Minha pele velava minha carne na mais vaidosa solidão. E num reflexo de vidro, assisti meu próprio velório. O que mais pesa é carregarmos sem ajuda de outros o nosso próprio caixão lustroso.

E a vaidade é o verniz.


Roberta Villa

José Antonio dos Santos

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Não usarei metáforas ou hipérboles, nem tão pouco eufemismos – há sim o tempo certo para ironias e poesias, mas, naquele instante senti-me muda e fria. O que narrarei em breve, posso lhes assegurar, por todas as desventuras deste nosso mundo de hoje, não é isto ficção. Pelo contrario, é uma descrição exata, como foto, de um fato refletido em minha íris e refutado em minha alma.Eu apenas queria fazer um conto sobre a vaidade, sim, quando chegasse em casa seria a primeira coisa a fazer.Como começar ? ... a vaidade, vaidade... pelo caminho certamente haveria de surgir à idéia!
Moro em um bairro periférico rodeado por casas sem reboque, crianças sem chinelos, mães sem pais ....enfim ...cercado pela carência de um detalhe que faz diferença, talvez,um olhar atencioso.Fazendo fronteira com o meu, há uma imensa ocupação de terra com casas de papel e pessoas de ferro, lá se chama Anita Garibaldi e todas suas ruas foram batizadas em homenagem á pessoas bravas : Zumbi dos Palmares, Antonio Conselheiro, Chico Mendes, Carlos Mariguela – acho bonito os nomes que escolheram.Um dia, ainda verei um logradouro com o meu nome ... talvez uma praça, melhor ainda, um viaduto. Bem, mas isso pouco importa agora, o que eu precisava era ter a idéia ... para fazer um conto sobre a vaidade.

Ao atravessar o beco, só faltará uma rua e uma pequena viela para chegar em minha casa, até então, não tive idéias quaisquer. Onde piso, tem oficialmente um nome registrado na prefeitura “Viela Beira Rio”, mas em verdade é apenas um atalho: sai do asfalto e entra no meio de duas casas de bloco, ando um pouquinho e já sinto um mau cheiro de esgoto; (...uma idéia sobre a vaidade ?).
Quando chove, mais forte torna-se o odor ao mistura-se com os cachorros e barracos molhados; (uma idéia sobre a vaidade...). De madeirite e improvisos são feitas as moradas ali abaixo. Eu viro para a esquerda - seria irracional escolher outro sentido - e estradinha segue estreitinha, entre uma parede de tábua e o fronteiriço córrego; (a vaidade ...vaidade ? !). Passo pelos garotos, sempre ficam ali à margem, pontuando o fim do caminho. Agora só faltará uma rua ...
Cada vez mais, aproximo-me de minha casa ...
Não sei como começar? Movo-me bem lentamente, talvez ainda dê tempo de pensar em algo; (eu preciso fazer um conto sobre a vaidade!). Silenciosa, cumprimento as pessoas com olhares, sorrisos (estou pensando!).Alguém me pergunta :
- Cê tem camisinha na bolsa ?
- Ih, não tem não, acabou !
- Ah ! Você nunca tem, cê sempre dá pros outros e esquece de mim ...
Trabalho como “agente comunitária de saúde”, e nesta hora, estava uniformizada, fazendo o percurso rotineiro, finalizando mais um dia de labor..
- Ah, você viu que mudou uma família nova pra esta rua? A moça tá pedindo pra cê í lá cadastrá eles ...
- Onde eles tão morando ?
- Naquela casa azul, abandonada.Eles invadiram ...
- Tá bom, to indo lá agora (e quando chegar em casa a primeira coisa que farei: o meu conto sobre a vaidade!).
Esta tal casa azul, há muito me causava curiosidade. É uma casa construída de comprido em um meio terreno. Apesar do muro, dava para enxergar que tinha quatro cômodos (espaçosa e de certa maneira confortável em relação a demais), havia os buracos para futuras instalações de janelas e portas, e estava rebocada e pintada à cal....mas, abandonada !? Realmente me chamou atenção o fato dela estar vazia há anos e bem ali – onde muitas famílias moravam em cima do esgoto, em corredores apertados, com chão de terra, parede de papelão, telhas quebradas ...e a construção azul, quase perfeita, até então vazia ? !
Aproximei-me.
- Oi, tudo bom, eu trabalho no posto de saúde, chama a sua mãe pra falar comigo !? (Às vezes eu pergunto até constrangida se está tudo bem ... em certas ocasiões é claramente impossível. Algumas pessoas se calam, apenas acenam com a cabeça , talvez não estejam respondendo minha ridícula saudação).
Aguardava a mãe, enquanto pude observar em volta um garotinho sem chinelo e nutrientes, a pisar numa imunda poça d`água com cara de fossa e um leve toque cítrico de limo marrom esverdeado.Nem deu tempo de ficar com nojo, a mãe chegou rapidamente e tomou-me a atenção. Era uma senhora de um meio século, parda, suada e gorda .
- Oi – ela me cumprimentou sem olhar nos olhos, mas ao abrir sua boca, esboçando um opaco sorriso, pude notar que os poucos dentes que tinha, estavam estragados ... aquilo devia doer! È sabido pela experiência popular, dor de dente é das piores que no mundo há... mas, existe a hora qual toda dor torna-se cruel e mui intensa então, nós deixamos de senti-la.Talvez, isso por sorte, ou quiçá a falta dela!? A Dona parecia não sentir.
- Oi, meu nome é Maria Marta, eu trabalho no posto de saúde e vim aqui para fazer o cadastro da sua família; eu vou precisar do nome e da data de nascimento de vocês. Então ela me disse seu nome, e fez um grande esforço para lembrar sua data de nascimento... não sabia ao certo quantos anos tinha, quantos filhos teve e quantos anos os pobres teriam. Mas a sua filha respondeu, e a partir daí, a conversa tomou rumo.
- A minha mãe tem trinta e dois anos. E eu tenho mais dois irmão, este aqui, e minha irmã de oito anos que está lá dentro.
Achei aquela menina perspicaz o suficiente para sobressair-se a miséria, a menina tinha um brilho nos olhos e uma firmeza decidida no tom de voz, digna dos grandes heróis anônimos da história.
- Qual seu nome ?
- Meu nome é Gisele e eu tenho treze anos.
-Gisele, que nome bonito! - ela sorriu, feliz por ter um nome bonito – Gisele é o nome da minha melhor amiga sabia ?
- É ? Eu acho o seu nome mais bonito do que o meu – eu sorri por ter um nome bonito - sabia que o nome da minha melhor amiga também é Maria Marta?
E naquele instante, por uma coincidência, nos tornamos melhores amigas. E nenhuma outra Gisele no mundo, pôde ser tão bela como ela, sem luz, sem água, sem jeito.Provavelmente, por todas as circunstâncias, ela não podia tomar banho, todos os dias, nem escovar os dentes após as refeições ...mas aí é um fato ameno, diante da situação de nem ter ao certo o que comer.Mas ela não me parecia fraca e faminta, achei-a ,sim, completamente limpa! Muito mais que fashion, ela era foda ao sorrir usando uma blusa de linho e manga comprida num dia de sol feroz. Foi tão só que descobri uma nova moda pop e descolada,há muito intitulada : sobrevivência.
O homem sujo ocupado com um cavalo, cara de doente, e sua carroça
cheia de matérias recicláveis e com um pouco de capim, estava se preparando para trabalhar e apressou Gisele, que o ajudava, enquanto conversávamos.Aquele era seu pai.
- Então, só falta você me falar o nome e a data de nascimento do seu pai.
- O nome dele é José Antonio dos Santos.
- José Antonio dos Santos! Sério? É o nome da minha rua! Que legal, o seu pai tem nome de rua .
Ele, apesar de indiferente, ouvia toda nossa conversa, e neste momento, prestou especial atenção, eu lhe disse:
- Eu sempre quis saber quem era esse José Antonio dos Santos, e hoje descobri que é o senhor.
- Prazer – ele me respondeu num misto de satisfação e surpresa – eu não sabia que tinha uma rua com meu nome.
- Tem, é a rua que eu moro, a rua de cima desta.
Ele sorriu, e o seu filho que estava com o pé em cima da água marrom esverdeada falou com orgulho “meu pai tem nome de rua !”, e deu risada.
A Gisele sabia que normalmente as ruas tinham nome de presidente, heróis, doutores... ela não deu risada, apenas parou com olhar reflexivo.
Terminei de fazer o cadastro e segui minha vida com a sagaz felicidade de morar numa rua com o nome de alguém conhecido. Apesar de não ser grande coisa morar onde moro, as coisas às vezes fazem um sentido esquisito.
Ao chegar em casa escolhi um sabonete no armário do banheiro, tomei banho, e depois me enxuguei numa tolha quase fofa, recém lavada com sabão em pó e amaciante...o que era mesmo que eu tinha que fazer quando chegasse em casa ?
Tentei me lembrar, era algo importante... andei pela casa ... fui até a janela : vi a carroça subindo a rua com Gisele e o José Antonio dos Santos.O que era mesmo que eu tinha que fazer ?

Roberta Villa

O olho que saí

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Aí, aí, aí, o ônibus pulava muito e em seu interior tudo permanecia sem inércia, porém, na mais profunda alienação. Pro alto e pra baixo, pro alto e pra baixo as pessoas, as idéias e os objetos. Paro alto e pra baixo as coisas se juntavam sem fazer conexão.

É, num repente surge no coletivo um sujeito-indivíduo desequilibrando a minha viagem plena. Era um garoto como tantos outros demais, que sobem e pedem ajuda e agradecem a Deus e descem e esperam... assim prosseguem a solitária romaria. Mas aquele era diferente. Trazia consigo os drops de sempre e um olho arregalado, sonso e inerte. (Apenas um dos olhos arregalado e sonso e inerte! Devia ser drogado, sim, sem dúvida. Mas por qual razão o ópio lhe afetaria apenas uma parte do corpo?... E no futuro, o que será do outro lado?!).

Aí, aí, aí, enquanto eu pensava subitamente o ônibus passou por uma curva fechada; assim todos os passageiros mantiveram os olhos abertos. Sorte teve o menino para diária petição - pois estava ao centro das atenções - não havia quem deixasse de observá-lo reparando seu olho estranho. Enfim, segue em anexo a ladainha tão clichê usada pelos vendedores de chiclé e afins:


É, “Senhores passageiros, desculpe atrapalhar a viagem de todos vocês...” (e todos os vocês arregalaram os olhos pra o garoto-indivíduo-senhor-dos-passageiros, como se ouvissem algo de novo. A atenção humana é aflorada por sensações sarcásticas, ou sou eu que me excedo?). “É porque preciso ajudar meus pais...!” (e todos permaneciam inertes como a vista sonsa). “O meu olho, como vocês podem ver, tem deficiência” (o evidente assusta tanto que ninguém se deu conta da nossa deficiência unânime, estatual e onipresente). “Por isso, este olho que vocês estão vendo é uma prótese e eu tenho que comprar outra nova a cada ano, mas é muito caro...”.

Aí, aí, aí, enquanto pulavam as idéias pro alto e pra baixo, a verdade desconexa foi esfregada em minha retina sem que eu pudesse desmenti-la. Não, não havia como! Asfixiando-me, a axioma sonsa e inerte é confirmada, fixada à rotina. Eu também preciso de uma nova todo ano, todo dia, a cada hora... eu também preciso e sei que é muito caro. E se não conseguíssemos, ficaríamos cegos? Mas valeria a pena tanto sacrifício, humilhar-se expondo as mais íntimas carências?”.

É, tive pena do meu irmão-garoto-indivíduo. O ônibus pulava batendo meu corpo contra o assento, desacelerando o ritmo do pensamento torto. Enquanto isso, todos os olhos passageiros grudaram-se na imperfeição daquele sujeito e ele, como se devesse algo, teve uma atitude decidida na pressa do agora: no presságio dum segundo arrancou seu olho arregalado nos expondo ao cerne buraco que havia no local do órgão da visão. Imenso fez-se o silêncio. Todos se voltaram para outros objetos, pessoas e idéias, porém, eu fiz questão de adentrar àquele túnel no corpo-carne do homem-garoto-indivíduo. Tentei em vão enxergar sua alma e meu olhar, sem me pedir permissão, tornou-se embaçado. O mundo a minha volta transformou-se num grande vulto !

Aí, aí, aí... (Neste parágrafo peço licença para registrar o protesto que veio a mim em forma de pensamento transcendente). Seria de extrema pieguice dizer-vos “uma lagrima caiu”. Ainda mais porque elas jamais caem – em verdade vos digo que estas emanam das minas dos olhos, rolam pela face e, a vós retornam pela epiderme absorvidas. Em vós, no interior ficam guardadas, com calma rancorosa concretizam o ciclo d´água. Quando menos se espera as esquizofrênicas revoltam-se e saltam de dentro d´alma, exigindo serem absolvidas. Pobres! Boa parte são prisioneiras da mágoa e por ela são consumidas; como vossos corpos um dia moribundos por vermes serão corrompidos.A magoa é a vossa moedora de cana – esmaga a doçura das lembranças rijas, liquidando-as num caldo de gosto esquisito.

É, o ônibus pulava, os objetos, as pessoas, as idéias. Pro alto e pra baixo a agonia do olho e as ires deslocadas, as pessoas fingindo não verem nada. “Aqui é para mostrar pra vocês que eu estou falando a verdade.” Mas alguém quer saber da óbvia verdade absurda? Eu tive medo, muito medo, enquanto tudo pulava tive mau agouro: vi o olho lançar-se ao chão junto com os drops-chicletes, e desta forma para sempre ficaria colado na carcaça do veículo; os passageiros, todavia desatentos, apressados, pisoteariam. Ele, ali se manteria viajando sem inércia, porém, na mais profunda alienação.

Aí, aí, aí... o discurso finalizou-se com indiferença dos ouvintes, enjoados pela desarmonia provocada naquele percurso. O deficiente colocou o olho que saí no devido lugar e todos respiraram aliviados. O meu decurso começava, eu não sabia em qual ponto descer. Vou desembarcar no ponto seguinte ao do olho que saí... e se ele for até o final?! Juro que mesmo lá me manterei estático, ainda que for necessário pagar nova passagem e regressar ao momento inicial. Só vou descer após o desfecho do indevido- garoto-olho-que-saí.

É impressionante a mobilidade do olhar humano, arregalando-se num instante e desprendendo-se quando não quer enxergar. Pois é, ao menos eu devia ter comprado um chiclé – tão barato…



Aí, aí, aí... meus caros, todos nós temos o olho que sai.




Roberta Villa

As menininhas

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Tinham rostos de porcelana e barrigas d’água.
A primeira, derradeira vez que as vi, lembro-me espantosamente bem. Meu corpo estava cansado e minha vista embasada pela fome, pelo sono. Era pontualmente meio dia, hora em que o sol faz-se imenso no céu , como grande bola de fogo quando a êxtase de sua luz é tão intensa que nenhum olho humano arrisca penetrá-la - hora em que Deus nos mostra que nós não somos bosta nenhuma mesmo. Normalmente eu costumo esperar pelos outros trabalhadores para podermos almoçar todos juntos, e pra quê? Eu sempre esperei por todos, mas até então, desta forma nunca ganhei nada.
Naquele dia fiz diferente. Caminhei na frente sozinho, sentindo aquela insuportável fome acompanhada por um vazio sem fim, e quisera eu que em pouco tempo fosse preenchido por boa mistura de arroz e feijão. Sei que os demais não poderiam sentir aquilo que estava em mim, por isso talvez caminhassem tão lentamente e despreocupados.Não os culpo, no entanto, não me conformo. Percebi, pela comprovada experiência, cada um deve seguir seu próprio caminho sem esperar por segundos ou terceiros. Pois é, pense bem numa coisa : milhares de pessoas podem passar fome, porém, certamente a fome que está em nós sempre será muito mais intensa que a de outro ser qualquer deste planeta; lógico, ninguém está dentro de nós para sentir o que sentimos, ninguém.
Justamente tratei logo de sentar-me à sombra da maior e mais próxima árvore que havia por lá. Não esperei por terceiros nem segundos... e os minutos que passaram por mim (reconheço, que não me transformaram, entretanto), me acrescentaram algo para todo o resto de vida.
Foi no exato momento em que me sentei a sombra que vi a menininha. Surgiu como se fosse forte raio de sol. Aparentava ter uns seis anos, era dona de um cabelo vermelho, cor de fogo, seus olhos profundamente amendoados davam um ar melancólico ao rosto de porcelana, contudo, a voz era firme e decidida como trovão. Sentada em cima de um muro alto, torto, esverdeado de limo, gritava:
-Raquel, Rebeca, Raquel, Rebeca !!!
Enquanto gritava, batia seus pés contra o muro - até pensei que pudesse quebrá-lo, ora, jamais conseguira - aquele muro muito imponente de cimento e blocos de pedra, e ela, apenas uma menininha.
E como se brotassem das pedras, de dentro do muro saíram mais duas menininhas, iguaizinhas a outra que eu vi, com os mesmos traços e rostos de porcelana, com o mesmo olhar melancólico dos olhos amêndoa. A única diferença que pude notar entre elas era o tamanho e a cor dos cabelos; a menorzinha, uns quatro anos, era loura como luz e vida e respondia pelo nome de Raquel. A outra, Rebeca, aparentava o dobro da idade da lourinha, tinha cabelos cor de terra, marrons de fios grossos, e naquele momento era a dona da bola.
- Miriam, eu truxi a bola.
- Vamos, saí daí de cima – gritavam, a pequena Raquel e a maior, Rebeca.
Então a ruiva menininha Miriam saltou, como pimenta, jogou a bola no meio da rua. E gritava, e pulava, e suava.Todas faziam como ela. E a rua era puro barro. Todavia, há um plano mágico no qual todo suor cai na rua para ir se misturar ao solo; depois ali nascerá uma plantinha (talvez flor de enfeite ou erva de chá, ou talvez erva-daninha). Assim as menininhas brincavam de bobinho com a bola.
Esqueci por um instante minha fome, estava com um questionamento fixo, da onde saia tanta menininha? Olhei bem para o muro, ele devia ter no máximo uns três metros de comprimento, elas tinham saído dali. Esmiuçando o olhar pude enxergar no final daquele muro havia uma abertura. Discretamente fui arrastando meu corpo e me distanciando da sombra para ver melhor da onde tinha saído tantas menininhas.
O muro cercava um terreno nocivo bem abandonado com muito mato e lixo, achei tão estranho e sujo, não acreditei que as menininhas tinham saído de lá. Mas bem no final do desamparo tinha algo parecido com uma casinha, as paredes eram tábuas de madeira por cima alguns pedaços de telhas formavam telhado.
Naquele momento o tempo parou, hipnotizado, só retornou quando percebi uma mulher pálida e sem face saindo do interior das tábuas e me olhando com angustia e reprovação. Caminhou até o muro e gritou:
- Entra, vocês não tão vendo que eu preciso de ajuda pra por o lixo pra fora.
E uma delas respondeu - já vou mãe. Rapidamente eu me levantei e fui ajudá-la, pretendia por o lixo para fora necessitava de ajuda forte e viril, pois era lixo de mais.
Fui ao encontro da mulher espectro e me surpreendi, pois o grande lixo do qual falara nada mais era que uma sacola de plástico com alguns papéis, fotos, e planos amassados. Ela recusou minha ajuda, baixou seus olhos para não me encarar. Sim, ela também tinha olhos, mas não eram amêndoas, apenas uvas-passa. Tive de analisá-la, pois se quis saber da onde vinha tanta menininha e se era ela a mãe, a resposta estava bem a minha frente. A mãe não tinha semblante nem nome, a mãe tinha um longo cabelo de cor desbotada, vestia uma saia cumprida como as irmãs da igreja e na barriga da mãe havia uma bola. Dentro da bola uma semente.
Mais uma vez, surgindo do nada das tábuas e atravessando as pedras saiu outra menininha. Fiquei impressionado - uma vez quando era garoto fui ao circo e vi sair coelho de cartola – agora, o que passava diante dos meus olhos era mais do que um truque, a Realidade. E a ultima e mais alta menininha que vi, na áurea dos dez anos, abraçou sua mãe num sentimento de cúmplice já podendo prever seu destino. Aquela mulher embora sem face era o seu espelho. Perguntei o seu nome.
-Débora.
Débora, a grande juíza, observava a tudo com coragem, às vezes interrompida por um longo suspiro. Ela não queria brincar com a bola, não tinha a mesma alegria insana das outras. Apesar do mesmo rosto de porcelana e de sua barriga d’água ela já não tinha as manchas de verme, nem os pés descalços. Parecia estar pronta para ir a algum lugar, no entanto, permanecia imóvel, como rocha, abraçava sua mãe, olhava amplamente pelas irmãs e às vezes suspirava.
Suspirava ...
As outras menininhas com prazer, jogavam a bola para o alto como se lançassem óvulos; a bola na barriga da mãe era pesada. A mãe desgostosa fitava a vista para baixo, paria pesos-pena no mundo. O mundo é uma grande bola e não tem pena, brincará com as menininhas. O ato consumado. E a outra suspirava.
Começou a ventar. A bola das menininhas perdeu a direção, a mãe gritou para que não perdessem a perdessem. O longo, liso e negro cabelo de Débora voou como um manto de luto no horizonte.O sol ficou tímido e se afastou um pouco. Meu horário de almoço estava por acabar, e eu nem sequer tirei a marmita da sacola plástica.
Não estava mais com fome, entreguei minha comida àquela Senhora e lhe disse “Deus te abençoe”. Ela não olhou na minha cara, segurou a sacola plástica em suas mãos e gritou: -Entra, vocês não tão vendo que preciso de ajuda pra por o lixo pra fora..E uma delas respondeu - já vou mãe.
Virei as costas, fui embora. Suspirei. Quis para sempre esquecê-las...
... como posso?

Roberta Villa