Você viu ou colocou poesia aqui?

Posted: quarta-feira, 29 de abril de 2009 by Fabiano Fernandes Garcez in Marcadores: ,
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Um grande amigo meu veio com uma provocação: O poeta vê poesia nas coisas ou põe poesia nas coisas que vê? Sei lá, respondi. Não sabia mesmo, mas resolvi refletir um pouco.
É impossível tentar definir poesia em apenas trezentas palavras, mas vamos lá. Primeiramente devemos separar poesia de poema. Poesia é o conteúdo, esse conteúdo pode conduzir a transcendência, beleza ou emoção, e poema é apenas o texto escrito em versos. Assim, o poema pode ter ou não poesia. Já a poesia pode estar presente em um poema, um filme, até mesmo em um entardecer, enfim, em tudo que, de certa forma, percebemos pelo sentimento, ou pela emoção.
Acho que o poeta enxerga poesia onde outras pessoas não veem, para ele é ver a poesia já existente, para os outros, quem sabe, seja colocar poesia onde não existia. Conheço alguns poetas que jamais escreveram um poema sequer, mas em conversas sempre aparecem com uma sacada legal, uma visão diferente sobre alguma coisa. Ver poesia, talvez, seja estar perceptível as belezas do mundo, das coisas, dos homens e das ideias. Há uma definição que gosto muito, cujo autor não me recordo, diz assim: Poesia é o olhar incomum sobre os homens comuns.
Um dia escutei os versos da canção Relicário de Nando Reis: (...) Sobe a lua porque longe vai?/Corre o dia tão vertical/ O horizonte anuncia com o seu vitral/ Que eu trocaria a eternidade por esta noite (...) Achei maravilhoso, já imaginou trocar a eternidade por uma noite apenas? E pior, saber que será só uma noite? Eufórico cantei para um amigo, ele disse: Nada a ver, né? Se foi o Nando Reis que colocou nesses versos, ou se só eu consegui ver, não sei, mas que há poesia ali, há!

Um Poema do Pedro Paulo

Posted: quinta-feira, 23 de abril de 2009 by O Blog dos Poetas Vivos in Marcadores:
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O BEMVINDO

De onde você vem vindo?
Do engodo
fatalista
das máquinas incansáveis
que repetem, mudas e
sem olhar para os lados,
os movimentos insossos
Da virtude que deus lhes deu?

Ou da aurora
que abraça o firmamento
e morde
a liberdade dos homens?

Passo lúdico é
sorrir para o destino:
papel em branco
com sede de giz-de-cera

Trabalho de criança
que fantasia para além
dos presentes que só-lhes-dão
no dia de aniversário.


Pedro Paulo
Belo Horizonte, 15 de fevereiro de 2009.

Metáfora e Ironia

Posted: quarta-feira, 22 de abril de 2009 by Fabiano Fernandes Garcez in Marcadores: ,
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Você é um anjo! Você é um tesouro! Não leitor não é um diálogo de um casal de namorados apaixonados. São exemplos de metáforas, tá lá no dicionário: Figura de linguagem que consiste em estabelecer uma analogia de significados entre duas palavras ou expressões, empregando uma pela outra. (Aulete Digital).
Melhor do que saber o que é, é saber para que usamos, e olha que usamos muito..., utilizamos a metáfora para indicar uma comparação de alguma coisa, por exemplo: Você é um anjo! Quem diz isso, compara as qualidades do anjo: bondade, inocência, beleza, divinidade e etc a alguém. Os poetas usam em seus poemas a torto e direito para expressar o que querem dizer, dizendo outras coisas. Agora, quando dizemos: Você é um anjo! Com um tom de voz mais baixo ou mais pausada que o normal, querendo dizer o contrário disso, aí já é a ironia, outra figura de linguagem. Também a utilizamos muito no dia a dia, o pior é quase sempre ninguém entende.
Conheci um rapaz que não entedia metáfora e, muito menos, ironia. Era um inferno conversar com ele. Brincadeira então? E piadas? Já imaginou contar piadas a alguém que não consegue entender que o que é dito não é o que está sendo dito? Olha que o rapaz se dizia muito culto, era estudante de uma dessas universidades badaladas e tudo. Certa vez, falando sobre futebol, disse eu: É, o Corinthians dançou! Como assim dançou? Dançou o quê? Ele respondeu.
Tanto a metáfora como a ironia fazem da língua portuguesa, seja ela a culta ou a coloquial, uma das mais lindas e inventivas do mundo. Você não precisa saber o que é metáfora ou ironia para saber como alguém dança sem dançar e que esse rapaz devia ser muuuuito inteligente ...

Este conto é ruim (não digam que não avisei)

Posted: domingo, 19 de abril de 2009 by O Blog dos Poetas Vivos in Marcadores:
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José Ancéfalo da Silva
-André Prosperi-

Segunda feira, 12 de maio, 5 horas e meia da manhã, hora de aprontar-se para o trabalho. José Ancéfalo levanta-se da cama, liga a TV no canal de sempre. Toma conhecimento de algumas notícias. Vai até o banheiro fazer o que deve ser feito, sai do banheiro. Troca o pijama marrom pelo uniforme azul. Requenta o café de ontem, dá dois goles. Um pouco ainda resta no copo. Dá comida ao cão que lhe agradece como se o fato fosse inédito. Desliga a válvula do botijão de gás, pega as chaves e sai após ter verificado se a porta havia sido devidamente trancada. Chega ao ponto de ônibus às 6 horas. Avista o 12C. Dá o sinal, o ônibus pára. José entra no ônibus e deseja um bom dia ao motorista que não o escuta. Paga a passagem, gira a roleta. Após girar a roleta pergunta ao cobrador se a mãe do mesmo havia gostado do jogo de ontem à tarde, o cobrador lhe responde que não, pois a mesma havia estado com o pai de José o tempo todo. Os dois sorriem e José acomoda-se num assento vago. Algumas quadras adiante o ônibus pára, mais passageiros sobem. Compartilham o mesmo itinerário. Um dos passageiros é Margarida que, ao contrário de José, não diz bom dia ao motorista nem faz piadas envolvendo a mãe do cobrador.
Ninguém naquele ônibus era incomum, entretanto, Margarida, que também era comum, pôde avistar um homem sentado com um aspecto menos comum que o de costume. Não soube reconhecer a característica causadora de tal aspecto em tal homem, tão pouco estava preocupada, apenas sentou-se ao seu lado, também não pelo fato de o homem carregar um aspecto pouco comum, mas por ser o único assento vago.
Por ser a pessoa mais próxima, era o homem que mais chamava a atenção de Margarida. O homem parecia estar com a cabeça em outro lugar. Não, não era este o fator incomum. O homem parecia estar com a cabeça em outro lugar de uma maneira diferente, não dava pra explicar. Motivos desconhecidos levaram Margarida a perguntar o nome do sujeito:
- José, e o seu?
- Margarida.
- muito prazer!
- O prazer é meu –Disse Margarida -Engraçado, pego este ônibus todos os dias e não me recordo de tê-lo visto outras vezes.
-É mesmo engraçado, pois pego também o mesmo ônibus todos os dias. Inclusive, todos os dias te vejo nele, talvez você nunca tenha prestado atenção em mim...
O mundo não sabia que aquele momento marcaria o início de uma linda história de amor.

Sobre a mesa havia uma toalha branca com detalhes vermelhos na borda, um par de velas acesas e um vinho chileno. Um recipiente ocultava o alimento enquanto Margarida aguardava ansiosamente o soar da campainha. Não se passaram cinco minutos da hora marcada a campainha soou. José Ancéfalo havia chegado. O fatos procedentes seriam tão previsíveis quanto os precedentes, não fosse por um detalhe: esta noite José Ancéfalo revelaria a Margarida um grande segredo. Mas que segredo seria este? O que José revelaria a sua amada naquela noite? Margarida ainda não sabia, entretanto, a angústia da dúvida era poupada devido a ausência de questionamento. Além do mais, José em momento algum disse a Margarida que trazia segredos consigo.
Há muito mais curiosidades que segredos, assim como, muitas vezes, nos ensina mais uma pergunta que uma resposta, entretanto, não despertaremos em vão a curiosidade do leitor. Segue a história oculta de José Ancéfalo da Silva:

José caminhava pelas ruas de seu bairro quando, de repente, espirrou. Havia levado as mãos ao rosto por reflexo e ao baixá-las, notou algo de estranho a repousar sobre as mesmas. Como é comum nos momentos em que algo de inesperado nos ocorre sem aviso prévio, José se surpreendeu: Seu cérebro estava em suas mãos e, não sabemos se foi o medo ou qualquer outra coisa, mas algo fez José Ancéfalo soltar o que segurava.
Agora permaneciam ali, José Ancéfalo e o cérebro, os dois, frente a frente.
Apesar de estar com o aspecto de quem caiu da cama durante o sono, o Cérebro fitava José com olhar de indiferença.
José o olhava com admiração.

Antes de o silêncio entre os dois tornar-se nocivo, o Cérebro começa a desabafar: “Hah! Livre finalmente! Livre das correntes da ignorância!”. Certamente diríamos que o cérebro estava feliz, caso tal estado fosse passível de ser alcançado por um cérebro fora de seu crânio. No entanto, faremos uso do termo Bom Humor. O cérebro estava de bom humor, mas este trazia um tom de revolta, agressivo até. Tanto que José chegou a sentir-se ofendido quando o cérebro colocou em questão a utilidade do relacionamento mantido, até poucos instantes, entre os dois. Aí começou a discussão. José banhava-se em lágrimas, chorava feito criança: “Ai meu Deus, o que será de mim? Como farei eu sem cérebro?”. O cérebro, com seu oportunismo peculiar, responde: “Bom, não sei o que o senhor fará de agora em diante, uma vez que o desenvolvimento de um raciocínio lógico sob o prisma científico nos comprova seu óbito. Quanto a mim, poderei ver as coisas antes de serem distorcidas por sua retina”. Antes que José pudesse indagar qualquer coisa, teve sua atenção roubada ao notar uma figura furtiva dobrando a esquina: O Eu escapara não se sabe como. No calor da discussão nenhum dos dois pôde dar importância ao sucedido.
Separados, cada um seguiu seu rumo. O primeiro em busca da felicidade, o segundo em busca da verdade.

José relatou o ocorrido soluçando de tristeza, enquanto Margarida demonstrava uma compreensão assustadora: “Veja o lado bom das coisas, antes viver sem cérebro a carregar um que nos faça sofrer. Quanto ao Eu, quem não passa a vida inteira à procura de um, dentro ou fora de si?” Tais palavras trouxeram paz ao espírito de José Ancéfalo, fortalecendo assim os precoces laços matrimoniais discretamente anunciados nas entrelinhas desta dramática história.

Um problema que nós, narradores, encontramos, sabemos, é o de não poder narrar dois fatos ocorridos ao mesmo tempo, ao mesmo tempo. Isso é realmente muito chato, porque quando dois fatos ocorrem ao mesmo tempo e um deles é pouco relevante, não hesitamos em optar por narrar o mais relevante primeiro, ou, o que virá a acrescentar mais conteúdo ao que se narra. Entretanto, não é este o meu caso. Veja bem, o José Ancéfalo foi abandonado pelo Cérebro, logo, pressupõe-se que cada um seguiu um rumo diferente ao mesmo tempo e, tanto o que sucede ao José quanto o que sucede ao Cérebro, convenhamos, são informações importantíssimas para o bom desenvolvimento desta história. Claro, tem ainda a Margarida, cuja característica interessante é a pretensão de escrever a história de sua vida a próprio punho enquanto interage com o acaso, assim como o leitor. Mal sabe Margarida quem escreve sua história. Enfim, a despeito das adversidades, retomemos a narrativa:

O local estava diferente. As paredes bem pintadas, a grama aparada. Chegou a pensar que estava no lugar errado até checar os dados de endereço mais uma vez: Era lá mesmo o lugar. Tocou a campainha. Segundos depois surge uma mulher gorda, de cara rosada e vestindo um pijama desbotado:
- Pois não?
- Por favor, o senhor José se encontra?
- Ô Tonho, tem uma coisa aqui querendo falar...
- Cérebro!
- Quê?
- A “coisa”, é Cérebro!
- Ô Tonho, vem cá! Tem um tal de Célebro querendo falar com um tal de José.
Em instantes alguém surge na porta:
- Quer falar com quem, meu amigo?
- Com o senhor José Ancéfalo, por favor.
- Ah, ele quer falar com o Zé meu amor. - Falou dirigindo-se à esposa.
- Zé? Qual Zé?- Perguntou a mulher.
- O que morou aqui antes da gente alugar a casa. Olha, faz tempo que ele se mudou viu senhor...
Após uma longa conversa com o casal o Cérebro consegue o endereço atual de José Ancéfalo. Dos males o menor, mas já era tarde da noite, então decidiu ir tratar com José no dia seguinte.

Margarida ocupava-se dos afazeres domésticos quando escutou alguém bater na porta. Era o cérebro. Ficou surpresa, jamais imaginara a possibilidade de conhecer o cérebro de seu esposo.
- Por favor, o Senhor José se encontra? – pergunta o Cérebro.
- Não, o Zé tá trabalhando. Entra, daqui a pouco o Zé chega. Você que é o Cérebro?
- Sim.
- O Zé falou bastante de você, entra, fica à vontade.

Os dois entraram. Margarida perguntou se havia problema em conversarem enquanto ela lavava louças. O Cérebro disse que não.
- Então, - continuou Margarida – O Zé me contou o que aconteceu. Até hoje não entendo, sabia?
- É mesmo, o que ele te contou? - Indagou o Cérebro, apenas para dar fluidez ao diálogo.
- Ele disse que você largou ele sozinho, de repente. E como se não bastasse saiu esculachando o coitado, dizendo que ele nunca serviu pra nada...
- Perdão minha senhora, -Interrompeu o Cérebro- Não esculachei a ninguém, apenas o tornei esclarecido acerca de suas debilidades, mais precisamente no tocante ao intelecto, e saí à procura da verdade, aliás, a senhora deveria fazer o mesmo...
- Ah! Faça-me o favor! Vou eu agora deixar de lavar minha louça pra sair por aí procurando verdade... No dia seguinte já não tem mais nenhum prato limpo!
- A estupidez é mesmo o mal da humanidade- Disse o Cérebro lançando um olhar de desdém –Por isso vivem nas sombras da ignorância, todos vocês. Enquanto há um mundo imenso lá fora, ansiando por ser desvendado, vocês simplesmente se acomodam, sentam, cruzam os braços e dão-se por satisfeitos. Eu prefiro a morte a tal condição!
- Morte! Morrer é fácil, qualquer um consegue. Quero ver é você passar uma semana sem ter o que comer, aí sim!
- Como ousa falar desta forma!- Pronto, o Cérebro aceita a provocação – A senhora por acaso faz idéia de quantos homens deram suas vidas em busca da verdade?
- Ah! Por acaso o Senhor Cérebro pode me dizer quantas verdades já deu vida a algum homem?
A discussão foi interrompida devido à chegada de José Ancéfalo. Margarida saúda o retorno do amado com um beijo no rosto e o alerta a respeito do visitante.

Neste momento encontram-se os três na cozinha, Margarida terminou de lavar as louças, no momento varre o chão. José e o Cérebro iniciam o diálogo num tom tímido e trivial regado a café:
- Então, conte-me as mudanças de sua vida. Pelo visto foram muitas!- sugere o Cérebro.
- A vida continua, né?- Diz José olhando para o teto - Tá tudo bem, fui promovido na empresa, aluguei essa casa aqui, que é bem maior, comprei um carro, até arranjei uma companheira pro Teobaldo (o cão). Como deve ter notado me casei com uma pessoa especial. - Neste momento José dirige o olhar à margarida - Sabe, ela cuida bem de mim. Quando eu fico triste ela me consola, me diz pra sempre ver o lado bom das coisas. Diz que sou importante para o mundo. Que de todos os espermatozóides do meu pai, eu era o melhor. É engraçado, mas foi ela quem me ensinou a assoviar. Bom, não posso reclamar da vida, é o que quero dizer. Estou feliz com a vida que tenho. Mas fale-me de você, por onde andou este tempo todo?
O Cérebro estava confuso, pois constituía uma enorme incoerência a idéia de alguém caminhar por aí sem cérebro. Assim como a idéia de alguém caminhar sem cérebro e, como se não bastasse, julgando-se feliz, constitua um absurdo. Mesmo assim deixou as confusões de lado e começou a narrar sua história:
- Confessar-lhe-ei. Estava muito pouco satisfeito com a situação em que nos encontrávamos. Parecíamos, citarei um exemplo bem claro, um par de sapatos sem boa comunicação, compreende? Um segue o outro, no entanto, nenhum dos dois sabe para onde estão indo, compreende? – José assentia com a cabeça – Não mais era possível conviver com tal situação. Era necessário sair em busca de respostas. Em busca de melhores condições para a expressão de minha existência. Era necessário sair em busca da verdade...
– Ele acha que verdade enche barriga! – Interfere Margarida. O Cérebro mais uma vez nada compreende.
– Continue – Diz José, num tom tranqüilo.
– Como ia dizendo, fazia-se necessário desvendar os enigmas da vida. Coisa irrealizável enquanto parte de sua estrutura empírica. Suas ilusões, e principalmente suas crenças, limitavam muito minha percepção da realidade e o desenvolvimento pleno e sadio de minhas faculdades. Você era uma prisão quando a liberdade era necessária.
- Entendi tudo! Diz José, interrompendo a narrativa do Cérebro – Não tinha mais o que fazer e resolveu vir aqui me encher o saco!
- De maneira alguma! - O Cérebro, neste instante, começa a explicar o verdadeiro motivo de sua visita: “Até agora discorri acerca apenas dos motivos causadores de minha revolta, pois então tenho de revelar-lhe as conseqüências da mesma, bem como as causas deste retorno repentino. Fui embora com a certeza de que entenderia a vida, finalmente, como deve ser entendida. Estava convicto de que encontraria respostas a minhas perguntas, uma vez estando apto a ver as coisas com realidade, com clareza. Adianto-lhe, a partir do momento em que lhe deixava, deixava para traz também a possibilidade de alcançar meus objetivos: Estava completamente equivocado e não sabia. Desde o momento em que fui embora não experimentei outro sentido senão o do tato, e diga-se de passagem, com a sua ausência este tato serve apenas para proporcionar-me a dor. Isto foi provado: a falta de sua imaginação não mais potencializa a dor, no entanto, não mais a interrompe” – Coitado do José, não entendeu coisa alguma do que ouviu. Mesmo assim manteve a atenção sem desvios. O cérebro prosseguiu: “Carrego comigo desde então a dor e a dúvida. Se saí em busca de clareza encontrei justamente o oposto, compreende? Nada mais faz o menor sentido, tudo me aparece como um enorme vazio, e não pense você que o vazio ao qual me refiro é aquele vazio confortável, tranquilo, não. É o vazio da reflexão eterna, compreende? Imagine um espelho com a liberdade de observar o mundo e suas coisas, mas ao refletir, reflete o nada. Esta é minha condição, minha prisão, onde a verdade me é inacessível, onde sequer tenho o direito de acreditar em minhas próprias mentiras, e, se não consigo acreditar em minhas próprias mentiras, menos ainda seria possível acreditar na mentira alheia. Certa feita, não sei por que razão, perguntaram-me: quanto é um mais um? Respondi da seguinte forma: o que é um? E as pessoas caíram na risada.” José Ancéfalo deixou escapar um sorriso discreto de superioridade, afinal, sabia muito bem o que era um. Margarida perdeu o interesse pelo assunto e retirou-se. Aproveitando a pausa de seu interlocutor, José começa:
- Nunca te imaginei numa situação tão ruim. Imaginei você se tornando um conceituado professor, sei lá, de filosofia, por exemplo. Mas nunca numa situação como esta. Já pensou em procurar um psiquiatra?
- Já. Ele disse que sofro de hipercefalia crônica, e se eu não aumentasse a dose diária de televisão minha situação pioraria progressivamente.
- Mas o que é que causou este problema?- José pergunta demonstrando compaixão e solidariedade.
- Nem imagino. Este é o problema, se fosse possível, a mim, imaginar ou crer em alguma coisa, faria como você e o resto das pessoas: olharia uma coisa uma vez, imaginaria várias coisas, chegaria a uma conclusão sobre a coisa, acreditaria nessa conclusão e pronto! Da próxima vez que visse a coisa não seria necessário repetir o processo todo novamente. Mesmo que após a primeira análise a coisa tenha mudado completamente, aquela primeira bastaria, dispensando assim, análises e reflexões posteriores.
O Cérebro fez uma pausa, olhou para o chão e prosseguiu cabisbaixo:
-Por isso vim até aqui, para retornar ao lugar de onde nunca deveria ter saído.
- Seja mais claro. Pediu José ao Cérebro.
- Quero voltar a fazer parte de sua vida, compreende? O que tem o homem a ganhar com esta separação? Aceite minha proposta, permita a mim retornar.- Neste momento Margarida põe-se a ouvir novamente junto ao marido. O cérebro prossegue: Tem novamente a oportunidade de obter conhecimento, sabe que não deve negar.
- Já vi esse filme antes!- Diz margarida de repente - Você acha que a gente vai cair de novo nessa? Não, de jeito nenhum. Conheço a história de Adão e Eva.
Para a surpresa do Cérebro, José faz um sinal de consentimento com a cabeça e começa
-A Margarida tem razão, não posso aceitar sua proposta.
- Como não pode? Você deve aceitar!- Diz o Cérebro, indignado. – Estão sugerindo ser o próximo passo da evolução da espécie humana o Homo-Demens? Isto é um absurdo!
Margarida viu que a coisa estava ficando séria, e para tanto não foi necessário compreender o significado dos termos utilizados pelo Cérebro. Preocupada com isso ela tenta contornar a situação:
- Por favor, senhor Cérebro. Tente entender, já é tarde demais. Um relacionamento que não deu certo uma vez, jamais dará.
- Mas muita coisa mudou depois do acontecido, as circunstâncias agora são outras, o mundo agora é outro.
- Ah! Não me venha com essa!- Margarida perde a calma outra vez – Desde que o mundo é mundo ele muda, não vem com desculpinha não! O mundo continua o mesmo: sempre mudando. Você é que nunca deve ter prestado atenção. Onde já se viu? Faz a besteira depois põe a culpa no mundo porque o mundo roda...
- Calma meu amor- Neste momento José tenta acalmar a esposa. – deixa que eu falo com ele. Olha aqui senhor Cérebro, sua história me comoveu bastante, mas não dá pra ter você de volta não. Sabe, não me leve a mal, mas as coisas melhoraram muito depois que você foi embora. Quando vivíamos juntos, eu vivia triste e confuso, no entanto, achava que era uma coisa natural, sabe? Achava que aquela angústia toda fazia parte da natureza. Hoje percebo que não é bem assim, vou tentar explicar de outro jeito: Nunca precisei misturar antidepressivo na ração do Teobaldo. Nunca precisei levá-lo ao psiquiatra e tenho certeza de que ele não se suicidará. Tenho certeza que se você passasse a habitar uma galinha, em uma semana ela entraria em crise existencial e começaria a perguntar coisas do tipo: “Se as aves voam e eu sou uma ave, por que eu não vôo?”. Ou “Quem foi a primeira galinha a botar um ovo? De onde esta galinha veio?” ou então: “Por que os homens dão apenas o que comer às suas comidas? Por que não dão à elas também o direito a liberdade e dignidade?”. Enfim, a coitada da galinha não veria sentido algum no viver. Da mesma forma, meu respirar somente passou a fazer sentido após aquele espirro, sabe? Sei que é burrice desfazer-se de um cérebro quando se vive bem com ele, porém, é burrice maior ainda passar a ter um cérebro quando se vive bem sem ele.
O Cérebro permaneceu calado. Se pudesse voltar no tempo jamais escaparia pela via nasal de José Ancéfalo mas, infelizmente, o tempo era outra coisa complicada para o Cérebro.
-Tudo bem!- Disse finalmente o Cérebro- Embora não seja recomendável, a estupidez é um direito de todos.
- É engraçado- Margarida interfere novamente- Você abandona o pobre homem, se afasta por todo este tempo e vem agora reclamar dizendo que o homem é um imbecil. Por que será?
O Cérebro não responde, apenas levanta-se com nobreza e brio. Retira-se.

- Que sujeito inconveniente, onde já se viu?- Margarida põe-se a resmungar. José Ancéfalo por sua vez, dedica-se a tarefa de apreciar a imensa sensação de alívio.
O Cérebro deixa a casa de José Ancéfalo. José Ancéfalo tranca o portão. Entra em casa, senta-se ao lado da mulher, aciona alguns botões de seu controle remoto em busca de entretenimento. Encontra. Meia hora depois, dorme.

Cinco horas e meia da manhã seguinte. Hora de aprontarem-se para o trabalho, o alarme do relógio dispara. José Ancéfalo e Margarida levantam-se da cama. Tudo continua como sempre foi.

Estacionamento do Shopping

Posted: quarta-feira, 15 de abril de 2009 by Fabiano Fernandes Garcez in Marcadores: ,
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A história não é minha, ouvi de uma pessoa que a ouviu de outra. É o seguinte... Um cidadão vai até um shopping e fica por vinte e cinco minutos procurando uma vaga para estacionar o carro.
Até aí tudo bem, quantas vezes não fizemos isso? Mas o cidadão em questão ficou nervoso e resolveu ir embora, mas ao tentar sair é bloqueado pela cancela e aquela voz eletrônica lhe pede que pague o bilhete, ele se recusa, claro!
Aparecem alguns funcionários do estacionamento/Shopping, - nem sempre o estacionamento é do shopping e o shopping é do estacionamento -, ele explica a situação, mas é inútil a missão, porque os funcionários não são eletrônicos, porém agem como se fossem: “Ordem é ordem, senhor! Está aqui acima de vinte minutos estacionado tem que pagar”. Ele, nervoso, retruca: “Acontece, meu filho, que não estacionei, não porque não quis, porque não pude e se tivesse conseguido estacionar não resolveria sair vinte e cinco minutos depois".
Imaginem pagar por um serviço que em vinte e cinco minutos você ficou tentando usufruir e não conseguiu! Ele decide que ... se tinha que pagar, então usaria o serviço. Entra no carro e o estaciona bem na frente, assim de atravessado, da cancela e sai para suas compras. Nisso chegam mais funcionários, um gerente que não sei se do estacionamento ou do shopping e a gente curiosa.
Lógico que a situação foi resolvida de maneira atraente para ambos, - menos para aquela gente que assistia a cena sem assistir ninguém, - mas para nós, fica a reflexão: Já que o estacionamento é cobrado, não se pode colocar na entrada um aviso de quantidade de vagas disponíveis? Garanto que isso já desestimularia motoristas sem paciência ou com pressa, como quase sempre é o meu caso.

A crônica

Posted: by Fabiano Fernandes Garcez in Marcadores: ,
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Para dizer o que é crônica, começo dizendo o que ela não é. Não é uma notícia, nem uma reportagem, apesar de estar presente na imprensa e às vezes retratar acontecimentos diários e quase sempre ser escrita por jornalistas, mas também não é literatura, mesmo existindo livros de crônicas e ser escrita por muitos poetas e romancistas.
Você deve estar se perguntando: “Mas que raio, então, é uma crônica?” É um texto curto que geralmente é publicado por um jornal, escrita com uma linguagem simples, linguagem de dia-de-semana, – já diria o famigerado do Guimarães Rosa -, vira e mexe aparece com uma pergunta ou simulação de diálogo com o leitor. O cronista, o cara que escreve a crônica, se inspira em acontecimentos diários, presentes ou não na imprensa, mas ao fazer isso dá a ela um toque pessoal, apresenta um tema sob seu ângulo de visão singular, de uma forma leve, descontraída, por vezes até com uma pitadinha de fantasia, criticismo, ironia e por aí vai.
No Brasil, existem e já existiram ótimos cronistas, como por exemplo: Ferreira Gullar, Luís Fernando Veríssimo, Arnaldo Jabor, Carlos Heitor Cony, Mário Prata que escrevem hoje em dia em grandes jornais, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Sergio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, Nelson Rodrigues, Raquel de Queiroz e outros tantos que já atravessaram o rio, - como o grande poeta Thiago de Mello se refere àqueles que já nos deixaram. A crônica, por seu caráter espontâneo e quase oral é um texto adorado pelos brasileiros.
Enfim, a crônica é isso, fazer com que o leitor leia e se informe sobre algo, sem perceber, como o amigo leitor que chegou até esse último parágrafo fez, leu e se informou sobre esse gênero textual prazeroso de se ler e mais ainda, de escrever.

Duro Trabalho - Hans Magnus Enzemberger

Posted: quarta-feira, 1 de abril de 2009 by O Blog dos Poetas Vivos in Marcadores:
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impacientemente
em nome dos satisfeitos
desesperar

pacientemente
em nome dos desesperados
desesperar do desespero

impacientemente paciente
em nome dos inensináveis,
ensinar