O Pouso de Orides Fontela - Roberta Villa

Posted: sexta-feira, 23 de janeiro de 2009 by O Blog dos Poetas Vivos in Marcadores:
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Silêncio, Metalinguagem e Transcendência.


A lírica moderna, desde Rimbaud e Mallarmé, converte-se cada vez mais, em magia da linguagem.Nas teorias poéticas do séc XX aparece também o conceito de sugestão, que começa no momento em que a poesia, guiada pela inteligência, desencadeia forças anímicas, emitidas através de forças sensíveis da linguagem, ritmo, som e tonalidade.Para esta poesia, real não é o mundo, mas apenas a palavra[1].
Como esclarece Hugo Friederich, para se interpretar a poesia moderna é necessário atentar minuciosamente para sua técnica de expressão: o estilo que transforma o que é real e considerado normal. È fundamental compreender os propósitos desta poética, sabendo que é na complexidade hermenêutica de sua linguagem que estão articulados os verdadeiros conteúdos, motivos e temas.Como ponto de partida, deve-se saber que um dos princípios da nova poesia está na discordância entre signo e significado, na possibilidade de reinventar os símbolos e os sentidos das palavras.
Segundo Cleri Bucioli, a marca moderna da escrita de Orides Fontela reside no seu fluxo continuo de reconstrução, trabalhando as malhas do tecido da linguagem à procura do novo.Fruto de uma tensão permanente entre o eu e a palavra, a poética de Orides constrói-se como exercício reflexivo de composição e transposição, por intermédio do qual a poeta localiza-se a um passo do desconhecido.Como comenta o critico Davi Arrigucci, a transposição:

...pode ser entendida tanto no sentido da procura além de um limite, como no sentido metáfora, de uma linguagem que vai além de si mesma para dizer ao outro, a outra coisa, a semelhança que esta além.

Cleri Bucioli afirma que a construção poética de Orides alicerça-se na luta entre o eu e a palavra.Consciente de que a poesia se faz - como propõe Mallarmé - com palavras, Orides trabalha incansavelmente a linguagem, pois a essência da poesia, ensina Heidgger, é concebida como essência da linguagem. No mais, a essência da linguagem não se esgota na significação, ela não se limita no ser; a linguagem, diz o filósofo, “é a casa do ser”, edificada em sua propriedade pelo ser e disposta a partir dele. Orides traz em seus textos, enigmas apresentados por meio de objetos cotidianos focalizados fora de seus contextos originais, deixando ao leitor, rastros fragmentados da mensagem a ser decifrada.Priscila Paschoa
[2], em seus estudos sobre Orides Fontela comenta:

Pela forma, entende-se melhor o referente, pois, em razão das proximidades das correspondências, é no simulacro dos signos que se consegue expor com mais precisão os traços mais identificáveis dos objetos da realidade empírica. Quanto mais um texto se volte para si mesmo, mais fará transparecer preocupação artística... ativando o plano estético da mensagem verbal, associado de maneira particular com a referida realidade.

Para tratar e exemplificar a sutil, contudo, audaciosa linguagem poética de Orides Fontela, bem como as influências modernas que estão contidas em sua engenhosa criação, foram escolhidos dois de seus poemas, publicados em distintos volumes, porém, que apresentam um dialogo explícito – a começar pelo titulo: Pouso e Pouso (II). Norteada pelo do conceito da metalinguagem, o qual foi vastamente abarcado pela literatura contemporânea, a análise destes poemas visa tocar o enigma do “pouso”, do “pássaro” que nos conduz ao silêncio, travando a angustiada reflexão sobre a vida, a existência e a linguagem. Sabe-se que após Baudelaire, o poético concentra-se cada vez mais na idéia do poema como realidade em si, auto-suficiente, então, a poesia alcança o estágio da auto-reflexão, tornando-se conteúdo de si mesma. Por tudo, justifica-se toda sua hermenêutica e imersão subjetiva repleta de ressonâncias.
O poema “Pouso” foi publicado em seu primeiro livro Transposição (1969). De acordo com Cleri Bucioli esta obra já anunciava os sua proposta lúdica, a fim de alcançar o “além de”. Um dos grandes desafios em Transposição é reconstruir a linguagem poética não como palavra de ornamento, mas, antes, como fonte de sentido.A epígrafe que abre este livro é composta por versos da própria poeta:

A um passo do meu próprio espírito
A um passo impossível de Deus
Atenta ao real: aqui.
Aqui aconteço.


A tensão dramática é o primeiro sinal da voz lírica de Orides que se apresenta pronta para transpor. A seguir, o poema “Pouso”.

POUSO

Ó pássaro, em minha mão
encontram –se
tua liberdade intacta
minha aguda consciência.

Ó pássaro, em minha mão
Teu canto
De vitalidade pura
Encontra a minha humanidade.

Ó pássaro, em minha mão
Pousado
será possível cantarmos
em uníssono

se és o raro pouso
do sentimento vivo
e eu, pranto vertido
na palavra?

Este poema é composto por quatro quadras, e, recorre a anáforas para reafirmar seu mote, desta maneira constituindo seu refrão: “Ó pássaro, em minha mão”. Nota-se, contudo, a ruptura deste ciclo na apresentação da quarta e última estrofe; exceção esta, que traz a relevância de um questionamento.
A ausência de rimas, marcadas pelo verso branco – herança do Modernismo – sugere outras formas de trato com a linguagem, possíveis no nível fônico (marcados pela coincidência sonora), sintático e semântico.
O ritmo
[3] composto através do paralelismo, é freqüente na poesia de Orides Fontela, que por vezes utiliza-se da repetição do verso inicial de cada estrofe para a construção de seus textos.De acordo com Priscila Paschoa, com esta ação a poeta está sempre a recuperar o movimento determinado pelo ritmo, realizando assim, um trabalho semelhante ao de tecer: desfazendo laçadas e soltando os fios da linguagem.Como lembra Cleri Bucioli:

... fiar equivale a recomeçar e recomeçar é o eterno retorno (à volta sempre ao mesmo fio) como trabalho infinito, incansável e paciente de quem experimenta a criação poética.

Por meio deste ritmo, o poema “Pouso” se organiza numa esfera concisa, entretanto, com possibilidades múltiplas, à medida que, cada vez que se retorna ao signo pássaro, mais abrangente se tornam suas possíveis significações. Octavio Paz
[4] afirma que o poema apresenta-se como círculo fechado em si mesmo, que está sempre a repetir-se e recriar-se. Ciclo este, hermenêutica e engenhosamente tramado, em que o ritmo contribui como elemento norteador dos sentidos.
A saliência do ritmo também é percebida na extensão de cada verso, alternados entre longo e curto. No poema analisado, os versos de cada quadra compõe uma seqüência irregular de silabas poéticas, organizados pela técnica do enjambement.
[5] Nota-se, que o poema apresenta a seguinte seqüência:
1º estrofe: 7, 4, 5 e 6 sílabas tônicas/ 2º estrofe:7, 3, 6 e 7 silabas tônicas;
3º estrofe: 7, 6, 3 e 2 sílabas tônicas/ 4º estrofe:6, 6, 6 e 3 sílabas tônicas..


Disposto através do verso livre, esta flexibilidade na métrica do poema cria um desenho no contorno de cada frase poética, semelhante ao ir e vir de uma maré: que se despeja e contrai-se imprevissívelmente, ou também, comparável a uma linha, que no ofício da costura, desprende-se, vai longe, e depois volta para dar o ponto. O ato de despejar-se, soltar longe a linha da linguagem, e depois se contrair e recosturar a significação, está associado à artimanha criativa de Orides Fontela, pois, ao mesmo tempo em que ela derrama o Eu lírico e traspassa a linguagem concreta, logo ela retoma sua retração, e sagazmente pontua com diversos elementos simbólicos, pistas que completam seu enigma. Esta pulsação do ritmo,cria uma sensação de movimento, entretanto, ao iniciar-se a quarta estrofe, percebe-se que esta alternância é contida, cedendo vez a uma seqüência de três sextassílabos consecutivos, que caracterizam inércia e rigidez; por fim, o ultimo verso do poema apresenta três sílabas tônicas:

se és o raro pouso
do sentimento vivo
e eu, pranto vertido
na palavra?

Ao decrescer a quantidade de silabas tônicas para concluir o poema o poeta vai de encontro ao silêncio.Na quarta e ultima quadra, há a sintetização da mensagem, todavia, esta não vem responder ao enigma travado, e sim, acrescenta-lhe um direcionamento reflexivo.
A última estrofe suscinta em si as particularidades do todo, com isto, aproxima-se da estrutura dissertativa, quando ao final da argumentação, instaura um parágrafo conclusivo, necessariamente, retomando aquilo que já foi dito. No entanto, o poema “Pouso”, não é finalizado com uma conclusão convencional, e sim, leva ao íntimo do Eu-lirico, à medida que revela o seu questionamento. Segundo a filosofia, interrogar é a única maneira de concordar e reafirmar o nosso ponto de vista; Heidgger ensina: questionar é elaborar um caminho, construí-lo
[6].



Nota-se, nesta finalização do poema, além da ruptura do ritmo através da quebra do paralelismo, há também uma interrupção da contemplação melancólica que dá vez a uma linguagem mais dura.O questionamento transcrito, nos remete a um aprendizado que necessita saber, rever os conceitos – o que, na maioria das vezes, é um processo duro e de desencantamento do mundo.
Quando se atenta minuciosamente ao percurso dos sons observa-se ao longo do texto que a melancolia expressa na sonoridade nasal e branda do “M” e “N” (que remete a uma tonalidade subjetiva), vai se fundindo a concretude dos sons consonantais explosivos “T” e “P’.

Ó pássaro, em minha mão
encontram –se
tua liberdade intacta
minha aguda consciência.

Percebese que na primeira estrofe são predominantes os sons nasais.

Ó pássaro, em minha mão
Teu canto
De vitalidade pura
Encontra a minha humanidade. No entanto, com o decorrer do poema, os sons nasais fundem-se aos explosivos.

Enfim, a quinta e última estrofe é rendida pela predominância dos sons secos, que reiteram a rigidez do mundo concreto e empírico:

se és o raro pouso
do sentimento vivo
e eu, pranto vertido
na palavra?

Ainda, em relação à sonoridade do poema, é importante ressaltar que a recorrência do vocativo: “Oh pássaro”, evidencia o quanto o Eu lírico está aflito a chamar, evocar sua presença.Infere-se, com o verso: “Ó pássaro, em minha mão”, que o poeta procura o dialogo com o pássaro, busca por ele ser ouvido,e através dele compreender-se.Somando-se a esta tonalidade angustiada, estão as sonoridades presentes ao longo do texto que acrescentam sugestivamente uma idéia de súplica.
Sobretudo, para se chegar à essência da significação do poema “Pouso”, é necessário compreender que por meio de elementos do mundo concreto Orides atinge a transcendência. As relações de sentido travadas a partir dos termos “pássaro”, “pouso” e “minhas mãos”, são metafóricas. A principio, é fundamental saber que a autora – devido a seu projeto de literatura auto-referencial - busca consciente a simbologia consagrada tanto em “mão”, quanto em “pássaro”, para repesá-las. Em relação a esta característica, Alfredo Bosi argumenta:

Reinventar imagens da unidade pedida, eis o modo que a poesia do mito e do sonho encontrou para resistir à dor das contradições que a consciência vigilante não pode deixar de ver.
[7]

O termo “mão”, simbolicamente representa a força, e a proteção dada de maneira generosa e fraterna. A mão, também pode ser entendida como fundamental para a expressão humana: é usada em gestos de saudação de benção, de cura, adoração, juramento. A posição das mãos pode representar gestos positivos de paz, aliança; ou negativos, como arrogância, vingança, deboche.Muitas vezes, as mãos falam pelo sujeito: mandam, exigem, prometem, dispensam, ameaçam, suplicam, questionam, negam.No caso de Orides, quando utiliza a imagem “mão” no poema, esta, abriga em si um outro símbolo: o pássaro.
O termo pássaro
[8] tem uma simbologia que, de modo geral, representa as entidades psíquicas de caráter intuitivo e mental, proveniente dos abismos do inconsciente.Este ser alado é uma notável sugestão da transcendência e pode, em alguns casos, indicar a intuição genuína como uma verdade invisível que se auto-realiza. O pássaro também simboliza a auto-análise, a reflexão.
Aproveitando destas imagens simbólicas e recontruindo-as, Orides Fontela tece um poema repleto de sentidos ocultos. Nele, a maneira contemplativa em que é apresentado o objeto “pássaro”, singulariza-o como representante da liberdade. Contudo, percebe-se que para o Eu-lirico torna-se um desejo obter esta liberdade intacta: “será possível cantarmos/ em uníssono”.
O elo de ligação entre o poeta e o pássaro de vitalidade pura, é a mão que o abriga durante o pouso. Semanticamente, o substantivo “Pouso” remete ao lugar onde alguém ou alguma coisa costuma estar ou descansar; e o verbo “Pousar” significa assentar, baixar, tocar a terra, recolher-se em pousada, descansar.Entretanto, ao pousar, ficar em estado de inércia, a ave do sentimento vivo principia o sentido ambíguo do poema:


o poeta contempla o pássaro (representação da liberdade através do vôo);
o poeta tem o pássaro na mão pousado (o pouso indica a inércia);

Se o poeta só pode ter o pássaro em sua mão pousado, então, lhe é subtraído o vôo, portando, não lhe é permitido alcançar a liberdade, o canto de vitalidade pura.


Ao contrario do pássaro, o elemento humano e pesaroso da consciência interrompe sua conquista.


Ao analisar a construção do poema, vê-se que as características do Eu-lirico estão contrapostas as do pássaro, os elementos do pássaro são: a liberdade intacta, o canto de vitalidade pura e o sentimento vivo; os elementos do eu lírico são: aguda consciência, humanidade, pranto vertido na palavra. Estes eles se relacionam por meio do objeto Mão, que torna-se um elo de ligação entre o pássaro e o eu-lírico.
Esta contraposição das características gera uma tonalidade apreensiva, no momento em que a consciência - faculdade racional de julgar os próprios atos, sentimento de dever, percepção da própria realidade -, acentuada pelo adjetivo “aguda” – afiada, intensa, violenta, é justamente o que impede o Eu lírico de realizar o vôo. Voar, entre outras definições do dicionário, é decorrer rapidamente o tempo, dissipar-se, desaparecer no ar. Voar é tirar os pés do chão; para o poeta, transcender a concretude das palavras e atingir um novo plano de expressão. Uma expressão intacta como a liberdade do pássaro, pura, ilesa dos conceitos massificados e do julgamento do senso comum.
Dando seqüência a esta relação de contraposição, há a expressão “canto de vitalidade pura”, canto, que também tem o caráter de “poesia lírica”, portanto, canto de vitalidade pura pode referir-se à genuína lírica quem tem a força da vida. Ora, se tem a força vital, se é genuína e pura, poderá ser ela a face mais plena da vida?
No poema, o pássaro é uma figura intercambiante, é quem possui “o canto de vitalidade pura”.E para o poeta, resta a humanidade. Humanidade, aqui, inverte sua conotação comum que abrange a complexidade e longevidade das proezas do homem, assumindo assim, um efeito de limitação, pois o homem não é livre porque ele é humano – preso a diversos conceitos e moralidades que lhe são impostos.Seguindo esta reflexão, é importante ressaltar que esse conjunto de normas e padrões sociais – ditados por forças políticas e econômicas - só foi possível de se estabelecer através da expressão e comunicação humana. Tem-se, então, uma outra indução ao poema e suas simbologias:
A mão representa a expressividade humana que é manipulável e manipuladora, portando, jamais poderia conter as características do pássaro: intacto, livre e puro. Não obstante, o pássaro representa a livre expressão, genuína, criativa.
Ao dizer que o pássaro é “o raro pouso/ do sentimento vivo”, tem-se a seguinte idéia:
o pássaro é o pouso do sentimento vivo;
o pássaro executa o raro pouso;
se o pouso é raro, logo, também é raro o sentimento vivo.

Se é raro o sentimento vivo, tem-se a seguinte inferência:
é comum o sentimento morto.

Ainda, contrapondo o homem e pássaro, se deduz: o pássaro tem o sentimento vivo, o homem tem o sentimento morto.
Sentimento, conforme consta no dicionário representa o ato de sentir, ou, a consciência intima. Mas então, como sentir quando não se está vivo – ou seja, quando nos é retirado de vez todos os sentidos: visão, olfato, paladar, tato, audição? Será então, que a humanidade da aguda consciência poderá ter sido rescindida de seus sentidos? Quiçá os sentidos foram ocultados na concretude em que nos encontramos alicerçados?
Cleri Bucioli, em seus estudos, explana sobre o processo do “apagamento do eu”, que remete à questão da “consciência íntima”. Explica, que este fenômeno, na lírica, é direcionado através da densidade na concisão do discurso.

"Em certos poemas, apesar da capacidade do enunciador em apresentar minúcias do objeto, o que pode inicialmente servir como argumento para sustentar uma proximidade com o ambiente, pelo processo de fazer com que detalhes deste ambiente transpareçam nas sensações bastante particulares do sujeito poético, nota-se, na sobreposição da imagem a voz lírica. Esta sensação dolorosa de que o poeta morre um pouco a cada poema, parece onipresente em Orides.
(...) o desligamento da voz que faz com que o autor entre em sua própria morte e a escritura comece, realiza-se desde que um fato é “contado”, para fins intransitivos, e não para agir diretamente sobre o real, isto é, fora de qualquer função que não seja o exercício do símbolo"
.
[9]

Orides Fontela ao compor sua lírica de sábia resistência a dissolução do Eu, recorre aos recursos hermenêuticas aproveitando-se de símbolos e metalinguagem, atingindo profundamente a função lúdica da palavra poética. Quando a poeta reorganiza as significações dos objetos, recria o mundo real, para assim, observá-lo sob um outro prisma.Como reflete Alfredo Bosi em seu ensaio “Fenomenologia do Olhar”, é necessário compreender o real fora de nós, enxergar além da superfície. Assim faz Orides ao travar no papel palavras que encaram e excedem os limites da concretude da vida, do tempo e da própria palavra, despertando novas formas e perspectivas.


“O que nos vemos das cousas são as cousas.(...) O essencial é saber ver.
(Alberto Caero).

Sob a pele das palavras há cifras e códigos. (Carlos Drummond de Andrade).


O sentido normal das palavras não faz bem ao poema. (Manoel de Barros).

Seguindo esta tradição, o poema “Pouso” de Orides Fontela brinca de esconder com os sentidos, ou seja, diz algo significando outro, consolidando-se por meio de metáforas.No texto analisado coexistem elementos de duas realidades, a do mundo empírico e aquela constituída com as significações poéticas. Todavia, esta poesia torna-se auto-referente: metalingüística. Contudo, o signo lingüístico não perde seu valor original, e sim, lhe é acrescentado um novo valor, capaz de submergir a alma lírica e retornar ao texto poético renascido e transcendente; assim outras possibilidades semânticas passam a existir naquele texto e tão somente nele.

A poesia só existe graças a uma recriação de linguagem, o que equivale a um rompimento na tessitura lingüística, das regras e da ordem do discurso.
[10]

Retomando as metáforas do poema tem –se as seguintes relações: o pássaro pode representar a liberdade ou a expressão livre; as mãos do Eu lírico (que podem ser entendidas como sua linguagem, sua cultura) são o instrumento de ligação entre ele e o pássaro.O pouso é o momento no qual a liberdade, ou ainda a poesia (o pássaro) está em contato (nas mãos) do Eu-lirico.Então ele o observa, o contempla com sua humana consciência. O poeta deseja cantar (poetizar) no mesmo tom do pássaro, afinação esta de vitalidade pura. Contudo o pássaro é que possuí “o raro pouso” (os sentidos intactos); e o poeta apenas o pranto, vertido na palavra.Esta representação melancólica da relação homem e linguagem, ou ainda poeta e poesia, é também uma reflexão do quanto a poética, por mais que busque transcendência, não deixa de criação humana.Sendo humana acarreta sofrimento e incompletude.
Desta forma, Orides inverte completamente a mimese convencional, o pássaro então, que pode ser significar a essência da poética, sendo metafórico e abstrato, torna-se mais real que a própria expressão do Eu lírico. A poética, representada na figura do pássaro, é pura e viril. O poeta tem apenas a conversão de seus sentidos - mirrados, humanos, racionais - em palavras no papel. Ao poeta resta a incansável busca pela poesia.
A aguda percepção de Orides Fontela medita sobre temas universais como o ser, o tempo e a palavra.Assim, refletindo sobre o existir, transcreve para sua lírica o momento em que o Eu dispõe-se a enfrentar e recriar o mundo empírico do aqui e agora; e desta forma, acaba assimilando a concretude do que há na realidade.









È essencial ressaltar que a obra de Orides Fontela traça um percurso metalingüístico que remete a um ciclo de apreciação da leitura e de produção literária. Todavia, seus poemas estão em constante diálogo entre si, característica que, Cleri Bucioli afirma ser o exercício pleno de transposição da palavra poética, resultante de um projeto de escrita. Através desta intertextualidade, Orides demonstra ao leitor o quanto a palavra poética é infinita, estando sempre a ressurgir com novidades, mesmo por meio de recursos aparentemente já esgotados.
Por meio deste ideal de recriação, Orides confronta a existência humana em relação à realidade empírica, lançando-se destemidamente num plano de retorno ao subjetivismo. Bucioli alega que, ao demonstrar a inutilidade da razão, a poeta consagra seu maior ato de resistência e crítica social:
A grande ironia de seu texto revela-se não na impossibilidade de dizer, mas na consciência da inutilidade de qualquer explicação.
[11]

Os princípios de redundância que regem a escrita de Orides, nitidamente encontrados ao longo de sua obra, sobretudo através de seus intertextos, são de extrema relevância para compreender a magnitude desta poeta.
No trajeto de seus textos, o mecanismo da redundância é sabiamente articulado.Baudelaire já dizia que para se penetrar a alma de um poeta é preciso perceber seu vocabulário recorrente – o estilo é a matriz de toda criação, é a maneira implícita e insistente pela qual o autor expressa algo, ali se revelam suas marcas pessoais.
Com a análise do poema “Pouso”, percebe-se, em síntese, que o pássaro pode representar a própria poesia. Sendo assim, o pouso significa o dilema do poeta, a escarpada tentativa de poetizar, de encontrar-se frente a sua lírica. Vejamos agora o poema Pouso (II), publicado no livro Alba (1983). Ao retornar em sua gênese – o livro Transposição – Orides amadurece sua lírica. Solitária, sua voz prossegue perpetuando em busca do novo.



Conforme explicação de Cleri Bucioli, “Alba” é uma forma de composição poética proveniente da lírica francesa provençal, que, ora alegre, ora tristemente representa uma saudação pela aproximação do Sol.Entende-se em Orides, este Sol como símbolo de luz, de revelação; assim, o livro Alba vem resplandecer em seus versos a tensão contrária do Eu lírico exposto à palavra austera, que rompe o silêncio. Neste livro a linguagem é mais direta, entretanto, mais severa, e a poesia é um desafio ao branco silencioso que habita em cada página.Dilacerando o cerne das palavras em busca de seu néctar, surge a redescoberta dos sentidos. Minuciosamente desvenda-se o caminho do “além de”: a transcendência.

POUSO (II)

Difícil pra o pássaro
pousar
manso
Em nossa mão – mesmo
aberta.


Difícil difícil
Para a livre
Vida
repousar em quietude
limpa
densa

e inda mais
difícil
- contendo o
vôo
imprevisível –


mutuar o seu canto
no alvo seio
de nosso aberto
mas opaco

Silêncio.


A estrutura do poema “Pouso (II)” é explicitamente livre, ou seja, não segue tipo algum de metrificação ou regularidade.De imediato, percebe-se que cada estrofe contém quantidade variável de versos, sendo que a última abrange apenas uma palavra: silêncio.
Os versos brancos, distribuídos no percurso destas estrofes uniformes, surgem como se pretendessem rasgar o vazio da página. A disposição dos versos sugere através da forma física do poema a idéia de fragmentação - como se o texto estivesse estilhaçado e cada frase poética fosse um caco lançado.Esta visão fragmentada da realidade demonstra a capacidade de Orides Fontela em transcrever para sua lírica uma esfera da realidade, convertendo-a em subjetividade, literatura e arte.
Ao todo, esta poesia é composta por vinte e um versos. Nota-se, contudo, que o texto busca determinado, fixo, pela concisão.Dez de seus versos – praticamente a metade do poema – são compostos por apenas uma palavra: pousar, manso, aberta, vida, limpa, densa, difícil, vôo, imprevisível e silêncio.
Diante deste trabalho de lapidação, palavra por palavra, escolhidas com precisão – o que lembra o poeta engenheiro João Cabral de Melo -, é fundamental atentar para a maneira como estão grafadas centralizadas, deixando para traz o branco do papel, um vazio, o silêncio.

Difícil difícil
Para a livre
Vida
repousar em quietude
limpa
densa

Kandinsk
[12] expressando-se a respeito das cores, afirmava que o branco é símbolo de um mundo onde todas as cores, em suas qualidades e propriedades tenham se desvanecido, portanto muitas vezes é considerado uma não cor. O branco para o sentido da visão é como o silêncio para a audição.

O silêncio não é diretamente observável e, no entanto ele não é vazio, mesmo do ponto de vista da percepção: nós o sentimos, ele está lá (no sorriso da Gioconda, no amarelo de Van Gogh, nas grandes extensões, ns pausas).
[13]

Os espaços brancos deste poema, que são como pausas num pentagrama, devem ser respeitados durante a leitura.O ritmo é prosaico, contudo deve ser considerado de acordo com a disposição dos versos, que novamente se apresentam numa ordem alternada e indeterminada com a técnica do enjambement , permutando entre longos e curtos.

Difícil pra o pássaro (verso mais longo);
pousar (verso curto);
manso (verso curto);
Em nossa mão – mesmo (verso mais longo);
aberta. (verso curto).

Ao ler o poema respeitando suas pausas, percebe-se que estas causam a impressão de uma atmosfera rarefeita, de uma real dificuldade no respirar, no falar, no expressar.Deste modo, obtém-se uma tonalidade resguardada, reprimida. Num tom confessionário o Eu-lírico parece revelar um algo misterioso, secreto - há uma sensação de surpresa, a cada verso que se inicia.
No poema, o silêncio é uma espécie de linguagem da ausência, pois consegue dizer algo mesmo não tendo conformação física para isso.
[14]

Não é fácil para o poeta dizer explicitamente aquilo que deseja ou necessita expressar – o que se torna evidente para o leitor. A insistência persuasiva do adjetivo difícil (presente quatro vezes no texto), também é reiterada por outros adjetivos que se associam a seu grupo semântico: denso e opaco.
Denso, de acordo com o dicionário, representa algo espesso, cerrado, compacto; no sentido figurado, escuro, carregado: sendo escuro, torna-se difícil de enxergar, compreender. Opaco significa algo não transparente, que não deixa passar luz, escuro, sombrio, turvo; logo, se é opaco é difícil de se permear.
Segundo definição de Benedito Nunes, quando um autor repete insistentemente uma determinada palavra, como faz Orides ao escrever “dificil difícil”, ele aplica a técnica do desgaste:
...como se, em vez de escrever, ela descrevesse conseguindo um efeito máximo de reflexo da linguagem que deixa a mostra “aquilo”, o inexpressável. Tal efeito é semelhante àquele de estranheza que se pode obter repetindo vezes sem conta uma palavra banal qualquer: casa, monte, quietude, etc
[15].

Por meio destes adjetivos, compõe-se a voz lírica do poema, angustiada, no entanto lúcida sobre sua condição, ciente de que sua missão – o desafio da linguagem – não é algo fácil. Logo, o sujeito lírico é como um herói trágico; ao iniciar o poema com o adjetivo “difícil”, enuncia ao leitor sua sina.
Todavia, para trazer a tona o inexpressável, Orides Fontela vai ao cerne das palavras e colocá-as, quando opostas, frente a frente. Duelando com os sentidos nesta batalha o objetivo é a conversão do mundo empírico no abstrato. Observa-se que, mesmo sendo repetidos constantemente os adjetivos de valor negativo, turvos, estes estão diretamente ligados a outros adjetivos que são claros e trazem uma idéia positiva ao objeto:

Difícil difícil
Para a livre
Vida
repousar em quietude
limpa
densa


As ultimas palavras desta estofe, dois adjetivos: limpa e densa, abarcam diferentes campos semânticos. Ambos referem-se à mesma palavra: repousar. De acordo com a própria estrutura do verso, o ato de repouso envolve necessariamente a quietude, o silêncio. O próprio dicionário já coloca o termo repousar como sinônimo de quietude, descanso:
“repousar em quietude”.

Contudo, limpo traz um significado (insento de imundices, sem mancha, puro, imaculado, claro) e denso refere-se a uma imagem oposta (escuro, carregado). O efeito criado com a ambigüidade “repousar em quietude”, seguido pelo paradoxo “limpo”, “denso”, expõe ao leitor a complexidade do ato. Se o pouso - que é como a quietude, o silêncio - ao mesmo tempo pode ser limpo e denso, ele traz consigo imagens positivas e negativas. Trava-se então o dilema entre expressar-se ou calar-se.


A situação proposta no poema “Pouso (II)”, pode ser verificada ao se analisar o trajeto ambíguo dos adjetivos utilizados. É notório o quanto as imagens apresentadas no texto são encaminhadas de acordo com o esta adjetivação. Neste sentido, a articulação paradoxal destes termos obtém por conseqüência a formulação de estranhamentos.Ao todo, no poema, existem quatro campos semânticos, que permutam entre luminosidade e obscuridade, estes são:

(mais negativo) referente à dificuldade: difícil, denso, opaco;
(mais positivo) referente a “Alba”: limpo e alvo.

E há também dois grupos de adjetivos que oscilam, ora com possíveis sentidos positivos, ora, negativos. Assim, compõe o tecido ambíguo do texto, instigando o leitor a desvendar o complexo enigma do “Pouso”.

referente a liberdade: aberta, aberto, livre, imprevisível,
referente ao silêncio: manso


O poema é iniciado com um adjetivo negativo relacionado ao ato do pouso.Já na primeira estrofe o pássaro é apresentado como um ser inquieto:

Difícil pra o pássaro
pousar
manso
Em nossa mão – mesmo
aberta.

Ora, se é difícil pousar manso, ou, seja, estar em estado de tranqüilidade, mesmo numa situação favorável, “em nossa mão – mesmo/ aberta”, há algo que causa angustia neste ser. Interessante é notar que o surgimento deste “pássaro” no poema, indicado pelo artigo definido “o”, causa a impressão de que ele já é conhecido do leitor. A partir daí realiza-se o ponto da intertextualidade com o outro poema “Pouso”.
Sim, o pássaro do qual se trata em “Pouso (II)” é o mesmo que aquele já visto no livro Transposição, bem como o ato de pousar traz a mesma significação.Ou seja, são poesias explicitamente intertextuais e ambas trazem como assunto e perspectiva a questão da metalinguagem. Entretanto, no segundo poema, há uma leitura menos melancólica que dá vez a um ponto de vista mais rígido, já citando o silêncio como uma proposta consciente.
Várias são as características transcritas no primeiro para o segundo poema.
Entre elas, duas são indispensáveis de comentários:

- o destaque para a liberdade do pássaro:
“Pouso”: “Ó pássaro, em minha mão/ encontram –se /tua liberdade intacta”;
“Pouso (II)”: “Difícil difícil/ Para a livre/ Vida”. (Aqui, a expressão “livre vida” refere-se ao pássaro).

- a utilização do símbolo Mão que representa a totalidade do Eu-lirico:
Pouso: “Ó pássaro, em minha mão”;
Pouso (II): “pousar/ manso /Em nossa mão – mesmo/ aberta”.

Entretanto, do primeiro para o segundo poema o pronome pessoal foi substituído de minha (mão), para nossa (mão); o que alude a um distanciamento do foco individual, convertendo-o numa voz enfática, generalizada - a medida que se compreende o “nosso” como a algo coletivo, que pertence a todos.
Retomando a questão dos adjetivos, observa-se, na terceira estrofe, a relação que eles estabelecem:

“e inda mais
difícil
- contendo o
vôo
imprevisível –“

Aqui, a dificuldade do pouso - de ter o pássaro inerte em mãos - é reiterada com “contendo o vôo o imprevisível”. Pois, para o pássaro que é livre, lhe é muito mais atraente o imprevisível, a surpresa do vôo do que a limitação que lhe é imposta quando opta pelo pouso.Pensando o pássaro como metáfora da expressividade poética, o Eu-lírico utiliza-se deste símbolo para manifestar seu ponto de vista: sobre o quanto é difícil organizar o fluxo das sensações abstratas e transcrevê-las através da lírica.
E o quão é arquitetada esta poética. Novamente, voltando-se à forma espacial do poema, percebe-se como o conteúdo é engenhosamente articulado. Se pensarmos os versos longos como o vôo, que atingem uma grande extensão; e os versos curtos como o pouso, inerte, contraído, imagina-se que o próprio pássaro se faz presente voando sobre o papel. E esta permutação, a incerteza entre pousar ou voar, é o que garante a surpresa – tanto para o pássaro quanto para o leitor. Há também o destaque dos travessões em uma determinada estrofe, que deve ser salientado, pois, integrado ao conteúdo do poema, eles reiteram a imagem da contenção, e ainda, constroem visualmente a idéia do vôo contido: como se imitassem um casulo – um local há isolamento e proteção.

“- contendo o
vôo
imprevisível –"

Não obstante, a poeta segue relendo-se num processo de continua maturação. O que outrora foi tido como meta romântica: “Ó pássaro, em minha mão/ Pousado/ será possível cantarmos/ em uníssono”, neste novo momento é visto de maneira amarga e um tanto irônica:

“mutuar o seu canto
no alvo seio
de nosso aberto
mas opaco

Silêncio”.

“Mutuar”, como consta no dicionário, é trocar entre si, permutar, dar ou tomar de empréstimo. Diferente de “cantar em uníssono” como no poema anterior, aqui, parece que não se tem mais a ambição de ser como o pássaro, de cantar como o pássaro; e sim, há uma leitura mais fria, menos utópica.
A expressão: “alvo seio”, e suas adjetivações contrapostas “aberto mas opaco”, estão relacionadas ao termo “silêncio”.Quando diz “alvo seio”, busca a imagem do íntimo, do centro; contudo este íntimo é alvo (límpido), aberto (claro, sincero, acessível, livre, receptivo e desprotegido), porém opaco (escuro, sombrio, turvo que não deixa passar luz).
Percebe-se que no poema o íntimo está relacionado ao silêncio. E para se alcançar o intimo do pássaro (o Pouso), o poeta necessita se abrir:

“Difícil pra o pássaro/ pousar/ manso/ Em nossa mão – mesmo/ aberta.” (Pouso).

“mutuar o seu canto/ no alvo seio/ de nosso aberto/ mas opaco/ Silêncio.” (Pouso II).

Conforme analisado, um objeto simbólico posto em circulação produz sentidos indefinidamente, e estes são um convite à experimentação. Orides Fontela faz uso de uma hermenêutica cíclica, ou seja, por meio de poucas palavras e símbolos, contendo-se e buscando precisamente a concisão, ela cria seu jogo de palavras com seu repertório próprio e consegue atingir um nível intenso de significação.
O fato do nosso interior (subjetivo) se abrir e continuar sendo opaco, remete ao seguinte verso de “Pouso”:

“Ó pássaro, em minha mão
encontram –se
tua liberdade intacta
minha aguda consciência”.

Retomando as questões existenciais da humanidade, “o alvo seio aberto, mas opaco” remete a racionalidade humana e à limitação da expressão.Observa-se também que o silêncio transita sutilmente pela superfície do poema e por ele é absorvido.Então, torna-se presente na composição do nível mais abstrato da leitura, o nível da significação dos sentidos figurados e metafóricos.Todavia, é necessário desvendar qual é a significação do termo silêncio e por quais motivos Orides Fontela o almeja.
De acordo com Merleau Ponty, na citação de Cleri Bucioli:

Para alcançar a palavra verdadeiramente expressiva, não se escolhe somente um signo para uma significação já definida, como, por exemplo, um martelo para cravar um prego ou alicate para o arrancar. É preciso sim, tatear em torno de uma intenção de significar, pois, se quisermos apreciar as palavras, precisamos sentir suas diferentes relações.
[16]

Segundo os estudos de Eni Puccinelli sobre “As Formas do Silêncio”, o silêncio é fundante, é matéria significante por excelência - ele significa em si mesmo.No entanto ele apenas deixa pistas, traços para ser vislumbrado de modo fugaz.Escorrendo por entre as tramas das falas - não se pode observá-lo se não for por meio de seus efeitos políticos ou retóricos.Para compreender o silêncio não se pode traduzi-lo em palavras e, sim, conhecer os processos de significação que ele põe em jogo.

A incompletude do sujeito pode ser compreendida como trabalho do silêncio.Sua relação com o silêncio é sua relação com a divisão e com o múltiplo.A incompletude é propriedade do sujeito e do sentido, e o desejo de completude é o que permite, ao mesmo tempo, o sentimento de identidade, assim como, paralelamente o efeito de literalidade (unidade) no domínio do sentido: o sujeito se lança no seu sentido (paradoxalmente universal), o que lhe dá o sentimento de que este sentido é uno. (...) A escrita permite o distanciamento da vida cotidiana, a suspensão dos acontecimentos. Ela permite que se signifique em silêncio.Assim, há auto-referência sem que haja intervenções da situação ordinária (...) O autor escreve para significar a ele mesmo. È um modo de reação ao automatismo do cotidiano.
[17]

A autora defende que o silêncio e o implícito não coincidem.A diferença, é que o silêncio consagra a possibilidade do dizer vir a ser outro.Explica que, por meio do silêncio, o sentido ecoa no sujeito. Todavia, nessa perspectiva, a polissemia torna-se função do silêncio, pois ele permite a relação do sujeito com a exterioridade, ou seja, o interdiscurso.Não obstante, esta relação gera um efeito de dispersão e instabilidade, pois possibilita ao sentido desdobrar-se de si em outros sentidos indefinidamente.Na arte, intencionalmente, o silêncio ocupa o lugar da resistência.

Percebida na relação com o silêncio, à ideologia aparece como o imaginário necessário que, pelas suas falhas, permite o deslocamento.(...). Já que o homem é um ser simbólico, a tudo ele deve atribuir um sentido. Tudo significa. Estar em silêncio é uma das formas de estar no sentido.
[18]

Na poética de Orides Fontela, o tom de resistência está na obstinação em romper as barreiras da expressão a fim de transportar o invisível para o visível. Benedito Nunes discute que a metamorfose do ser real no ser da expressão remete ao reencontro da realidade pura. Ou seja, a proposta é reinventar o mundo, redescobrir os sentidos.

Não nos contentamos em viver; precisamos saber o que somos, necessitamos compreendê-lo e dizer, mesmo em silêncio, para nós mesmos, aquilo que nos vamos tornando.
[19]

Nos estudos de Benedito Nunes acerca da obra de Clarice Lispector – também uma autora da modernidade que busca na metalinguagem investigações profundas sobre existência - compreende-se que a linguagem é como uma prisão dos sentidos:

“Presa. Onde está a imaginação? Ando sobre trilhos invisíveis. Prisão, liberdade. São essas as palavras que me ocorrem. No entanto não são as verdadeiras, únicas e insubstituíveis, sinto-o. Liberdade é pouco. O que desejo ainda não te nome”.
[20]

Priscila Paschoa toma das palavras de Rilke para sintetizar a impressão que se tem sobre a proposta literária de Orides Fontela: “Como suportar, como salvar o visível, senão fazendo dele a linguagem da ausência, do invisível?”.
Orides Fontela parece ousar renomear as coisas.Seu ”Eu –lírico” trata da palavra como em sua primeira finalidade: a de nomear. Alfredo Bosi, ao tocar nesta questão retorna à Bíblia quando no livro de Gêneses, ao primeiro homem foi dado o poder de nomear. Sobretudo, nomear, mais do que um dom é um poder:

...quer refazendo zonas sagradas que o sistema profana (o mito, o rito, o sonho, a infância); quer desfazendo o sentido do presente em nome de uma libertação futura, o ser da poesia contradiz o ser dos discursos correntes.
[21]

Bosi afirma que dos caminhos de resistência mais trilhados, a poesia-metalinguagem, é aquela que atinge maior profundidade de defesa e autocontrole.Em sua imersão subjetiva e auto-referencial ela reaviva a atmosfera mágica que a sociedade de consumo, capitalista e tecnológica renega.



Portanto, aí está a relação de Orides Fontela e sua criação poética - o seu “Pouso” – com a metalinguagem. A critica ao esfacelamento do homem contemporâneo vêm rodeada de enigmas e de silêncio. Sobretudo, uma das coisas que a poeta busca no silêncio é a chance de apagar o todo, desfazer o real e recomeçar novamente.Renomeando os objetos e oferecendo novas possibilidades de sentido para o ser – e para a poética.

Citações
[1] Friederich, Hugo. A estrutura da lírica moderna. São Paulo: Duas Cidades, 1991.(p. 193).
[2] Paschoa, Priscila. In: “o Ritmo na poesia de Orides Fontela como elemento desarranjador”.
[3] Como informa Priscila Paschoa, Natalia Correia (1996, p.54), escritora portuguesa da segunda metade do século XX, aponta que, para o poeta moderno, são as pulsações da possibilidade criada pela palavra as responsáveis por ordenar o ritmo. Antonio Candido em “o estudo analítico do poema”; ed. Humanitas, p.68 diz: “Ritmo é, pois, uma alternância de sonoridades mais fortes e mais fracas, formando uma unidade mais configurada.
[4] Bucioli, Cleri: op. cit, p. 94.
[5] Por enjaberment entendemos a partição de uma frase no final de um verso ou uma estrofe, sem respeitar as fronteiras dos sintagmas, colocando um termo do sintagma no verso anterior e o restante no verso seguinte. É o enjambement que cria um efeito de coesão entre os versos, pois aquele onde começa o enjambement não pode ser lido com a habitual pausa descendente no final, e sim com entonação ascendente, que indica continuação da frase, e com uma pausa mais curta ou sem pausa. (Revista P@rtes 2000-2006 Editor: Gilberto da Silva São Paulo - Brasil).
[6] Citação de Cleri Bucioli, op. cit. p. 82.
[7] Bosi, Alfredo: op. cit, in: “Poesia e Resistência”.
[8] Na alquimia, o pássaro encontra-se vinculado ao medo da morte, à separação da alma do corpo, sendo que existem representações medievais em que a alma deixa o corpo do morto em forma de pássaro. Nos tratados alquímicos, aparece como um guia em direção à experiência interior e os alquimistas os consideravam como formas gasosas de matéria sublimada, de forma que os espíritos, os vapores e as substâncias eram simbolizados por eles, usando representações distintas de suas espécies.Na mitologia germânica, os pássaros pertencem a Wotan e na mitologia greco-romana a Apolo sendo que uma de suas características seria a capacidade de profetizar. Possui ainda o simbolismo de que seja um anjo. Nos contos de fadas, aqueles que compreendem a linguagem dos pássaros são capazes de adquirir um conhecimento especial. Eles são o pensamento e a imaginação, transcendência e a divindade, como libertação do materialismo. Um bando de pássaros pode ser negativo. (www.salves.com.br).
[9] Bucioli, Cleri: op. cit. p.22.
[10] Friederich, Hugo: op. cit. p 151.
[11] Bucioli, Cleri.: op. cit. p. 63.
[12] Bucioli, Cleri. Op.cit., p 117.
[13] Pucinelli, Eni. Op. cit.
[14] Paschoa, Priscila. op. cit. p. 11.
[15] Nunes, Benedito: op. cit.
[16]Bucioli, Cleri: op. cit., p. 100.
[17] Pucinelli, Eni: op.. cit., p. 54.
[18] Pucinelli, Eni: op. cit., p. 179.
[19] Nunes, Benedito: op.cit.
[20]Lispector, Clarisse. Perto do Coração Selvagem, p. 61. Trecho encontrado no livro de Benedito Nunes, op. cit.
[21] Bossi, Alfredo. Op. cit., p. 146.

LÍQUIDO DOURADO

Posted: terça-feira, 20 de janeiro de 2009 by Fabiano Fernandes Garcez in Marcadores:
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Ah! Líquido dourado, belo
que me põe entorpecido
que me faz louco
excitado

Líquido dourado
que põe dormente meus pudores,
meus amores

Ah! Líquido, doce, amargo,
colérico, malvado
que desperta meus demônios
adormecidos

Que me faz falar
Que me faz calar
Que me faz recordar

Líquido fermentado, também de Baco
que me põe de joelhos e enrubesce
minhas faces

Líquido dourado
que me deixa tonto
que me deixa zonzo
que faz minha cabeça girar, girar, girar ...

Poesia se é que há p. 72

SONETO AO AMOR COMERCIAL

Posted: by Fabiano Fernandes Garcez in Marcadores:
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Nunca louvarei o produto amor
Que é vendido em comerciais
No nobre horário, Produtor!
Decorado por bocas banais

Não consumirei o modelo de amor
Como é cantado em dias atuais
Ou outrora, prevalecendo a dor
Culpa dos sentimentais ancestrais

Esse amor vil, industrial
É repugnante, sinto-lhe asco
Porque ele é um mal

Pois serve de bom pasto
Que nutre o rico capital
Onde todos, servem de frasco

Poesia se é que há p.56

Posted: segunda-feira, 19 de janeiro de 2009 by O Blog dos Poetas Vivos in Marcadores:
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A lenda da falta de dinheiro

Posted: by Fabiano Fernandes Garcez in Marcadores:
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Dizem as más línguas, até mesmo porque as boas pouco falam, que num país distante, muito distante, distante mais ainda quatro vezes, mas, muito parecido com o nosso Brasil: na língua no tamanho no futebol na safadeza, em tudo! Se não fosse tão distante, iam dizer que era o próprio Brasil, mas não era não! Era não.
Um dia o dinheiro todo desapareceu, sumiu, escafedeu-se! O dinheiro todo, todinho, não se sabe se foi feitiço ou encanto, obra de Deus ou do Diabo, de alguma criança, porque criança às vezes é tudo anjinho e às vezes é tudo diabinho ou os dois de uma vez só e adoram brincar e fazer graça!
Nesse país todo não havia mais dinheiro nenhum, nem pra contar história, nem pra remédio. Dinheiro estrangeiro sobrou? Nem nenhum. Nada!
Os ricos que eram muitos, mas poucos comparados aos pobres, que só pensavam em dinheiro e não existia mais dinheiro para pensar, diziam que não existindo mais dinheiro eles também não iriam existir e assim fizeram. Morreram.
Não morreram todos não! Sobraram aqueles que não só pensavam em dinheiro, pensavam em outra coisa também, um exemplo é a Cléia, era rica, mas era feia, feia de dar dó, feia como bater na mãe por causa de mistura, mais feia que filhote de cruz-credo! Ela arrumou um namorado, e sem dinheiro para comprar um presentinho para ele, arrumou na feira uma moréia, aquele peixe que é cumprido, bravo e feio, não tendo onde colocar, colocou ele na bolsa, depois de amassar e beijar bem o namorado, pediu para ele pegar o seu presente na bolsa dela, ele fez, mas a moréia lascou uma dentada nos dedões dele que rancou naco! Ele pensou que o presente era a dentada e ficou com uma raiva danada! Espalhou a história.
Todo mundo ficou sabendo e apontavam ela dizendo:
_ Lá vai Cléia da moréia!
Depois virou a moréia da Cléia, e como a língua do povo simplifica tudo, virou a Mocréia, por isso que nesse país mulher feia hoje todos chamam assim.
Voltando, deixa desviar não!
Os pobres, que choramingavam a falta de dinheiro, choram tanto, tanto, mais tanto, porque a falta de dinheiro era tanta, que eles morreram também. De secura! Mas antes de morrer encheram o mundo de criança, que para fazer criança não precisava de dinheiro e paravam de chorar um bocadinho.
A criançada, essa cresceu! Fizeram tanta festa com doces pirulitos balas, tudo menos verdura, e isso nem precisava dizer! Não precisava de dinheiro para nada! Iam jogar jogo eletrônico jogo de truco jogo de futebol jogo de vôlei, jogo de damas, até jogo de jantar! Era uma belezura para a criançada tudo era pura diversão!
Havia pessoas que viviam bem sem dinheiro, diziam que dinheiro não era nada e ninguém nunca não precisava dele! Essas viveram melhor ainda!
Comprar ninguém mais comprava, trocava, dava, emprestava, os que pedia de volta ficavam corcunda, é o que acontece com quem empresta e pede de volta, segundo a lenda nesse país,
Iriam comprar como sem dinheiro? Não compravam, faziam assim:
_ Meio quilo de toucinho por um quilo de farinha!
_ Um galo vivo por duas canja de galinha!
_ Um beijo e três cafunés por uma carta assinada!
_ Três litros de óleo por uma carne assada!
_ Toma lá e dá cá, tome isso que dá nisso!
_ Cê ta loco? Loco é ocê ! Você não vê que isso é chouriço!

Num dia desses de troca-troca, um capiau do interior desse país estava numa sede para pitar um cigarrinho de palha, mas com o fim do dinheiro fazia tempo que ele não pitava.
Era de sorte. Passou por ele um jovem cabeludo, olhos vermelhos que nem fogueira de São João, conversa vai, conversa vem, que todo capiau, bom mesmo é de prosa, conseguiu com o cabeleira um punhadinho de fumo que não era de corda não!
Como não tinha onde carregar o fumo, pôs no sapato, chegou em casa guardou em baixo do colchão e fumo era fedido, muito fedido. E com o fumo fedido capiau acostumou.
Pitava, pitava sempre, pitava bem, pitava até olhinhos ficarem em brasa, depois dava uma moleza. Nem perguntava mais porque fumo era tão fedido e não era de corda não.
Certa vez caiu de cócoras como de costume e começou a pitar, calma, tranqüilamente. Pitava só vendo fumaça subir. Encostou perto um dos guardas desse país e deu cheirada no ar, deu safanão no capiau e pediu para ele cuspir no chão, capiau tentou, não conseguiu não. Cuspi estava seco só.
O guarda aguardava aguado, capiau sozinho se ria do guarda que havia tomado seu fumo. O guarda falou:
_ Quê que ta fazendo aqui?
_ To pitando sô!
_ Que pitando que, isso não é cigarro não!
_ É sim, cigarrinho bão!
_ Cheira cheiro mau.
_ Ele cheira fidido assim, porque pus ele embaixo de colchão de dormir, umideceu, estragou, mas ainda tá bom sim!
_ Vai preso ou leva sova, escolhe pra mim!
É por isso que depois daquele dia nesse país, todos que pitam fumo que cheira fedido e não é de corda não, tem que pitar escondido, senão: vai preso ou toma sova de guarda de plantão.
Depois de algum tempo, algum não, muito tempo! Que ser humano não aprende logo de saída, demora, padece primeiro, eles começaram a perceber algumas coisas sem importância, como: honestidade bondade simplicidade caráter índole educação, coisas que o dinheiro escondia, e agora não tinha mais dinheiro para esconder tudo isso atrás dele.
Namoro por interesse? Não tinha mais não. Golpe do baú? Também não. Puxa-saco? Sumiu tudo. Mulher que agüentava marido? Não agüentava mais não!
Sapato de plástico era sapato, de couro de jacaré era sapato, de couro de boi era sapato, de couro de pelica era sapato, botina de lona era sapato, não tinha mais o dinheiro para dizer esse é bonito esse é feio. E era bonito o que era bonito e feio o que era feio!
As pessoas começaram a tratar melhor umas as outras, pois eram tudo gente igual, agora não tinha mais o dinheiro para dizer esse é gente boa esse não é não.
Dizem que nesse país dinheiro não tem até hoje, e a maioria da população passa aperreio, que é o nome que se dá para o ato de ficar sem dinheiro, e que Deus fez o dinheiro nunca não existir para as pessoas repararem mais no interior das outras pessoas e no seu também.

A questão da propriedade privada na concepção de Rousseau - Roberta Villa

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Introdução
Crítico e polêmico, Jean Jacques Rousseau, como homem do século XVIII, procurou realizar uma análise científica da humanidade. O ponto central de seu pensamento foi a oposição entre natureza e sociedade, bem como a questão sobre a desigualdade entre os homens e o conjunto de elementos que os legou a tal condição: que separa ricos e pobres, magistrados e fracos, senhores e escravos.Refletindo acerca da condição humana, das leis da natureza, tanto quanto da situação do homem civil e de sua degeneração moral, Rousseau levantou interessantes questões sobre o trajeto do estado “de natureza” do homem até a chegada ao estado plenamente social.


Segundo o autor, no contato direto com a natureza é que o homem encontra o pleno sentido da liberdade. Partindo desta concepção, formula o conceito de “estado de natureza", o qual nunca existiu efetivamente, porém, em sua filosofia serve como um patamar de comparação. Neste estado de natureza o homem vivia de forma solitária e simples, inocente e feliz. Todavia, o homem natural preocupava-se apenas com a sua conservação, sem se amargurar com o dia de amanhã. Agia por extinto, não tinha paixões ou sentimentos de vaidade, egoísmo. A noção do teu e do meu não havia, pois, o que legitima este conceito - a idéia de posse ou de propriedade – também não existia. Assim, o homem natural era uma extensão da própria natureza e tudo o que era natural, como as frutas, as ervas, os riachos, lhe era familiar e disponível (como direito natural). Deste modo tudo era de todos e por isso não fazia sentido as disputas por terra, comida e posse.


Dentro deste contexto a posição de Rousseau acerca da propriedade deve ser compreendida como conseqüência da análise que faz do homem e sua transição para a vida social. Na obra “Discurso sobre a Desigualdade” são apontados motivos que aproximam os homens para o convívio e, conseqüentemente, para a sociedade. Justamente no estágio civilizado que a propriedade se estabelece e com ela surge a desigualdade, que para o autor é a origem de todos os males. A propriedade privada foi o que gerou o modo degenerado de conduta moral dos indivíduos.


Não obstante a civilização, para Rousseau, impôs o nivelamento e a artificialidade sobre o comportamento humano ao ignorar as necessidades individuais e naturais. Contudo, em sua teoria Rousseau não pretendia impor uma regressão da sociedade ao estado primitivo, e sim, repensar os valores do mundo moderno que brutalmente se sobrepõe aos valores inatos dos homens.



A questão da propriedade privada na concepção de Rousseau
Percebe-se na obra de Jean Jacques Rousseau, o papel do “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens” em denunciar as mazelas da desigualdade política desde sua origem. É precisamente na segunda parte do livro que o autor nos expõe explicitamente a sua idéia acerca da propriedade:


“O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado o terreno lembrou-se de dizer “isto é meu” e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo. Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não poupariam ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: “evitai ouvir esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não pertence a ninguém” (p. 63).


A partir deste parágrafo nota-se como a instituição da propriedade representa efetivamente a passagem da ordem natural para a formação da sociedade civil fundamentada na moral do “isto é meu”. Contudo, é importante salientar que o parágrafo reproduzido acima é na verdade um artifício retórico do autor para enfatizar a questão, que de fato vem sendo discutida desde o início da obra como um processo. No mais, com a instauração da propriedade privada motivada pela articulação de vários elementos ordenados por Rousseau - como a o perfectibilidade, a vida em família, o amor próprio e a divisão do trabalho – é que a desigualdade irá consumar-se como a barbárie da sociedade moderna. Entretanto, o autor se refere a desigualdade moral ou política, gerada por convenções sociais; e não a desigualdade natural – que compreende diferenças físicas, de mais forte e mais fraco, de homem e mulher, etc.Todavia, para que as relações entre propriedade e desigualdade sejam realmente compreendidas, faz-se necessário realizar uma digressão não só pela obra, como também por toda a história da humanidade.

Logo no Prefácio do “Discurso sobre a desigualdade entre os homens”, é narrada a constituição do homem e o processo de sua degeneração social; para tanto Rousseau fará uso de um hipotético “estado de natureza humana” a fim de resgatar os possíveis valores e ações inatas ao homem. É importante ressaltar que este elemento de resgate do “estado de natureza do homem” é um artifício retórico utilizado por outros autores - que assim com Jean Jacques buscaram compreender a natureza do nosso comportamento social – como por exemplo, os pensadores que lhe antecederam, Thomas Hobbes e Jhon Locke. Contudo, no pensamento de Rousseau o estado natural do homem diverge dos anteriores; Locke e Hobbes nos apresentam um estado de natureza como algo violento, um período instável e inseguro qual a humanidade deveria superar ao evoluir para a civilização. Já para Rousseau o estado natural do homem é de plena liberdade onde se vive em comunhão com a natureza e de forma autônoma, assim, sem necessidade de ajuda de outros, sem paixões, luxo ou amarguras, o homem vive bem, satisfeito; a sua única preocupação era em manter a subsistência. Neste estado de natureza a única desigualdade que é possível haver entre os homem é fruto da própria natureza, como a diferença de tamanho, força, juventude, etc.; no entanto essas diferenças não fazem com que um sobrepuje os demais, nem lhe causa vaidade ou egoísmo.No estado de natureza não há propriedade, tudo é de todos.

Todavia, para Rousseau o homem primitivo não pode ser responsabilizado pela condição de desigualdade em que se encontra a civilização, pois, a essência do homem é naturalmente boa devido a compaixão resultante do sentimento de auto-preservação: o amor de si. Este é o instinto natural que evita a dor, o sofrimento e a morte, fazendo com que o ser humano se identifique com a dor daquele que padece em especial aqueles de sua espécie. A partir deste principio formula-se, então, a teoria da bondade original. Portanto a compaixão contribui não só para auto-preservação do individuo e sim, para toda a espécie humana.
A medida que as dificuldades do meio se apresentavam ao homem, ele teve de superá-las, e desta forma vai adquirindo novos conhecimentos. Esta característica própria do homem, que o difere dos demais animais, consiste em aprender e adaptar-se ao ambiente e suas dificuldades, criando novas alternativas de sobrevivência; Rousseau a denominará por Perfectibilidade. É por conseqüência da perfectibilidade que o homem natural aprendeu a pescar, caçar e por vezes a associar-se a outros homens.



“Aprendeu a dominar os obstáculos da natureza, a combater, quando necessário, os outros animais, a disputar sua subsistência com os próprios homens ou a compreender-se daquilo que era preciso ceder aos mais fortes.” (p.64).



As primeiras associações entre os homens foram aleatórias, esporádicas e se resumiam apenas à necessidade de uma ação objetiva e efêmera; como podemos supor que era a situação de uma caçada. Entretanto, ao perceber que era mais fácil e prático sobreviver coletivamente os homens foram se organizando desta forma. Neste ponto é que surge a primeira "revolução": a construção de abrigos - fazendo com que o homem natural permanecesse mais tempo em um mesmo lugar. Outra importante conseqüência da associação humana foi o desenvolvimento da linguagem: “...quando as idéias dos homens começaram a se estender-se e a multiplicar-se, e se estabeleceu entre eles uma comunicação mais íntima, procuraram sinais mais numerosos e uma língua mais extensa...” (p. 52).


Foi no desenrolar deste processo de associação humana que surgiram as famílias e com elas desenvolveram-se sentimentos ternos: o amor conjugal e o amor paterno.Nesta fase havia um precário sentimento de posse, entretanto, se o homem conseguisse se manter neste estágio pré-social e pré- moral, com poucas necessidades e sem desejos, provavelmente o sentimento de posse não iria subvertê-lo a maldade da sociedade moderna.

Mas, bastou que a pequena comunidade envolvida em atividades rotineiras - como sentar-se a volta da fogueira, cantando e dançando - passasse a se enxergar, que cada indivíduo desejou exclusivamente ser notado. Os homens começam a se comparar e mediante esta situação surgem as impressões de que havia o melhor, o mais forte, o mais bonito, o mais hábil. Estava dada a grande faísca que ascenderia a nossa fogueira de vaidades.

“Assim, o primeiro olhar que lançou sobre si mesmo produziu-lhe o primeiro movimento de orgulho...” (p.65)


Pouco á pouco o homem vai se afasta de deu estado natural e dos valores que a ele é inato, como a compaixão. O amor de si é substituído por um uma paixão própria do estado social o “amor próprio”. Este novo tipo de “amor” é o que solidificará a base moral do homem social, que tende a estimar e priorizar sempre a si do que aos outros ou ao coletivo. Ao contrário do amor de si - nem bom, nem mal, apenas instinto – o amor próprio, que se origina na comparação com o outro, é artificial e acaba por se tornar o germe dos vícios sociais tal como o ciúme, o ódio e a vingança.


Ainda dentro do processo de vivencia comunitária é que o homem desenvolverá novas técnicas como a agricultura e a metalurgia, evento ao qual Rousseau nomeia de "a Grande Revolução". A partir destes eventos ocorre também a divisão das terras e sobretudo a divisão do trabalho, criando condições propícias para a fatal dependência entre os homens, uma vez que agora era possível que um homem trabalhasse por dois.


“Desde o instante em que um homem sentiu necessidade do socorro de outro, desde que se percebeu ser útil a um só contar com provisões para dois, desapareceu a igualdade, introduziu-se a propriedade, o trabalho tornou-se necessário e as vastas flores transformaram-se em campos aprazíveis que se impôs a regar com o suor dos homens e nos quais logo se viu a escravidão e a miséria germinarem e crescerem com as colheitas.” (p.69).


Tanto a passagem do amor de si para o amor próprio quanto a divisão social do trabalho e das terras foram cruciais para a consolidação da noção de posse.É importante ressaltar que para Rousseau, o homem se corrompe de fato após a instituição da propriedade privada, que irá estimular e perverter sentimentos de caráter egoístas e mesquinhos.

Neste ponto, retornamos agora ao início do texto quando se apresenta o trecho que sintetiza a essência da propriedade privada para a consolidação da sociedade moderna: “O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado o terreno lembrou-se de dizer “isto é meu” e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo”. Neste momento, a época do estado de natureza terminou definitivamente, decorrente das transformações que a perfectibilidade proporcionou. A propriedade, uma vez consolidada, dará origem há inúmeros conflitos que refletem a ambição humana. Devido a ambição é que o homem irá sobrepujar-se ou prostrar-se diante de outro, afirmando relações antes ilegítimas tal qual a escravidão. Os frutos da terra passam a ser produzidos não mais para suprir necessidades básicas, e sim para que alguns lucrem em detrimento de outros.


A posse da terra e a divisão do trabalho tornam-se elementos de hierarquização tanto de status quanto de condições econômicas entre os homens e fragmenta a humanidade em ricos e pobres, poderosos e fracos Deste modo são alicerçados os governos e leis. Ao denunciar a fragilidade das leis e da sociedade civil e descrever o modo e os motivos pelo qual a humanidade entregou sua liberdade e dissipou sua igualdade, Rousseau nos expõe a uma questão jurídica das mais complexas e polêmicas: “o que legitima o direito de propriedade?”.

O direito de propriedade não encontra sua legitimidade no estado de natureza pois é fruto de uma convenção humana. Tem-se então que a liberdade natural foi trocada pelo que se pode chamar de liberdade civil. Todavia, é na obra “Do Contrato Social” que o autor busca responder a estas questões e aponta um caminho para solucionar a crise de degeneração que a civilização moderna legou á humanidade.


Rousseau aponta que a sociedade política, a autoridade e o Estado foram criados pelos homens mediante um contrato com a finalidade de manter a ordem e evitar maiores desigualdades. Por meio desde contrato o homem aliena ao Estado parte de seus direitos naturais - o direito à vida, à expressão do pensamento, à locomoção, etc. – para que enfim, sobressaia-se o que é a vontade geral.

Ou seja, de acordo com a obra “O Contrato Social” o homem abre mão de sua liberdade natural e recebe em troca a liberdade civil “e a propriedade de tudo que possui” (p. 36). A vontade geral é nada mais do que a manifestação da soberania, e a soberania é a vontade do povo sendo inalienável e indivisível – e afirmar que a soberania é propriedade do povo causou muita discussão na época em que Rousseau escreve sua obra.

Não obstante, a vontade geral é estabelecida para garantir condições de igualdade a todos, portanto, a liberdade, a igualdade e a ordem civil estão asseguradas mediante a um contrato social genuíno que prevê um novo direito de propriedade.Dentro desta perspectiva os eleitos do povo para governar são apenas representantes que devem executar a vontade geral; o que nos indica que Rousseau apoiaria a democracia direta ao defender a criação de pequenos Estados para facilitar o exercício democrático – pois a população pequena pode reunir-se com mais freqüência e desse modo os cidadãos partilham da autoridade soberana. Rousseau concebe uma idéia de democracia baseado num principio em que os interesses arbitrários do indivíduo devem dar lugar à construção coletiva daquilo que permite a igualdade entre todos.


Então, sobre a questão da propriedade dentro da ordem civil, o autor propõe que seja repensado e reformulado uso da propriedade com a elaboração novas cláusulas legislativas a fim de suprimir os abusos conseqüentes da exorbitante acumulação individual de propriedades. Rousseau propõe que a propriedade deve estar subordinada aos interesses da vontade geral, uma vez que a lei deve ser expressão da soberania do povo.

Conclusão

A busca pela igualdade e a liberdade são os grandes paradigmas da filosofia de Rousseau; tanto que os princípios de liberdade e igualdade política por ele formulados inspiraram as matrizes teóricas dos setores mais radicais da Revolução Francesa - quando foi destruído o que sobrava da monarquia e instalado o regime republicano.Com base em fatos históricos pode se dizer que o pensamento de Rousseau é revolucionário em dois sentidos: na restauração das antigas liberdades e na reconstrução completa da ordem tradicional. Contudo, diferente da ideologia iluminista, Rousseau foi contrário a todo tipo de individualismo, pois este supõe a oposição entre individuo e a coletividade. Na verdade o que ele defendia era a necessidade de restaurar a pureza original dos costumes do homem, corrompidos pela sociedade moderna.

Uma das principais intenções de Rousseau ao elaborar o “Discurso sobre a Desigualdade”, é demonstrar como a liberdade natural do homem foi perdida com o advento da propriedade privada. Esta se insere como divisor de águas entre o estado de natureza e o estado civilizado. A passagem entre estes dois mundos inicia efetivamente o processo de degeneração moral dos homens por meio da noção de posse, da necessidade de afirmar: “isto é meu!”. O resultado desta concepção será a legitimação da violência tanto para conter os dominados como para ameaçar os dominadores.

O início da civilização é corrupto, como também o é seu desenvolvimento dentro da complexa teia de relações e hierarquizações sociais que se estabelecem. Os ricos e poderosos encontraram cada vez mais meios para manter seus domínios, que vão desde a força bruta pelo direito do mais forte, até a dissimulação do governo e das leis que se presta a legitimar tal dominação.
Da teoria de Rousseau aplicada a nossa realidade, podemos tirar como exemplo a concentração da renda, da terra, e dos meios de produção nas mãos de uma ínfima minoria da sociedade. Desta forma uma elite aviltante sobrepuja a humanidade, e a liberdade e igualdade natural são violadas na mesma proporção em que caminhamos para a violência e exclusão. Pode-se dizer que Rousseau é uma das bases do pensamento político moderno, influenciando a elaboração de diversas Constituições e também com seus ideais de a participação direta do povo..

Por fim, a teoria de Rousseau trás uma articulação entre análise política e a antropológica, pois não nos são apresentado apenas as leis e a sociedade como devem ser, mas também os homens como podem ser. E ainda, a articulação entre educação e política, de modo a que estas passassem a levar em conta as necessidades naturais do homem. Rousseau acredita no poder de transformação pela educação, como caminho para a conquista de uma sociedade na qual predomina a vontade geral. Para ele é por meio da educação que o ser humano no estado social poderá desenvolver plenamente capacidade de participação da vida política e respeito á vontade geral, desta forma a organização jurídica, política e moral da sociedade é resultado da formação dos cidadãos.

Sobretudo, se a bondade natural do homem foi corrompida pela sociedade moderna, é dever da sociedade recuperá-la. Para tanto é imprescindível reformular profundamente, tanto do sistema educacional, quanto de organização do Estado.

SE JESUS VOLTASSE HOJE

Posted: by Fabiano Fernandes Garcez in Marcadores:
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Quem acreditaria
se Jesus voltasse hoje?
Mas, se ele voltasse,
seria brasileiro

Nasceria na periferia
de São Paulo
seria negro?
Cantaria RAP?

Sobreviveria a
Mortalidade infantil?
Exclusão social?
E a violência sobreviveria?

Se Jesus voltasse hoje
Nasceria no sertão da Paraíba,
ou Pernambuco.
Teria voz grave e rouca
para falar a multidão
e cantar repente

Sobreviveria a seca?
a fome?
Sobreviveria ao racismo?

Se Jesus voltasse,
hoje no Brasil
dormiria nas ruas?
Comeria de favor?

Chamaria Jesus?
Genésio, Gésio
Ou Mané, José, João
Benedito, Romão?
Precisaria Ele de nome?

Seria católico?
evangélico?
Seria caótico?
Seria cristão?
Espírita?
Novamente judeu?
Seria Jesus ateu?

Acreditaria nele os Deuses?
Dessas religiões?
Seus seguidores?
Seus patrocinadores acreditariam?

Ou prefeririam acreditar
Naquele de barro, louça,
gesso ou madeira
Que fala pela boca dos outros
Se Jesus voltasse hoje,
Falaria o que já falou?
Se é que falou

Saberia Jesus escrever?
Seria um teólogo?
Para saber sobre as religiões?
Agora dessa vez, caso
voltasse, desrespeitaria as regras
como já fez?
Se Jesus voltasse quem
acreditaria?

Poesia se é que há p.87

Jhonson and Marry Jane

Posted: domingo, 18 de janeiro de 2009 by O Blog dos Poetas Vivos in Marcadores:
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Era uma vez Jhonson and Marry Jane. Estes eram dois irmãos saudáveis de saúde que faziam parte de uma família aparentemente normal- não eram o melhor exemplo de harmonia, mas também nunca foram ao Ratinho pedir d.n.a, ou à qualquer outro programa do tipo “João Cléber” se expor em troca de sub-existencia..
Continuando, o pai era um humilde ex- operário que certa vez estava andando de bicicreta pra ir na casa de sua irmã Gorete comer uns crocrete, e distraído mascrando chicrete sofreu um acidente não muito grave – mas teve que amputar um dedinho na mão esquerda.Na época, isso foi o máximo pra ele, desempregado, pode fazer uns couver do Lula em uns comício por aí, o povo adorava ... bons tempos aqueles !
Bem, a mãe biológica batera as botas há alguns anos. E como todo macho precisa de uma fêmea, ele arranjou uma outra, que não é assim uma Brastemp, mas... cá entre nós, o titulo MÁ-drasta já causava um mau aspecto – como um ex-presidiário procurando emprego, um negro num carro importado, ou um morador do Cingapura abrindo conta no Unibanco.NÁO, imagina, não é questão de preconceito, mas a sociedade é assim mesmo e nem tentem mudar – se não se pode vencê-los junte-se a eles !
OK. Vamos falar de Jhonson and Marry Jane. Eles eram pré-adolescentes (aquelas crianças que têm desejo sexual aflorado de tanto assistirem novelas e Big Brother), e tinham acabado de sofrer um grande trauma em suas vidas – descobriram toda verdade!!! Sim, aquela loira simpática e graciosa, mãe de Sacha, ex de Pelé, Senna e Marlene Mattos, havia se corrompido no passado, vendendo seus princípios e seu corpo, para essas revistinhas de quinta categoria. Jhonson não se conformara e acredita até hoje que tudo foi uma montagem daquele site vagabundo, tudo intriga da oposição.
- Maldita Internet! disse Jhonson.
- Maldita Xuxa. retrucou Marry Jane.
- Mas que belos peitos - complementou o garoto, tentando superar a
situação. E a partir desse dia eles começaram a ter uma nova visão do mundo.
Certa vez, a madrasta que era anarquista e não agüentava mais ouvir Jhonson and Marry Jane discutindo suas divergências sobre a questão das reformas, da ALCA e do FMI- put* que pariu , ela não agüentava mais.Então foi com os dois até a Praça da Sé, disse que ia comprar um dog mais um suco citrus por um real e se mandou. Mas os dois eram bem espertinhos e conseguiram voltar pra casa. Ao chegarem, fizeram o balanço da atividade e concluíram que mais valia ficar na Praça onde não teriam que torcer para o time do pai deles, nem comer quiabo e ir dormir quando não se está com sono.
- Meu irmão Jhonson, vamos fundar lá uma sociedade alternativa.
(realmente ela estava muito influenciada por um cd do Raul Seixas).
- Concordo, aquele lugar é divertido, cheio de crianças que ficam rindo à toa felizes pra caramba.
- É porque eles cheiram cola.
- Ah, e daí ?
- Verdade, isso é apenas uma forma alternativa de encontrar a felicidade e a paz interior. Eu acho que vai ser uma grande experiência de vida para nós, num futuro próximo poderemos dar palestras, publicar livros ou até mesmo dar entrevistas na tv ...
- Só se for na Rede Cultura minha amiga ...
- Ótimo !!! – e assim partiram.
A forma dinâmica e sensata de Jhonson and Mary Jane pensarem era tamanha, que os dois iam brincar de ser João e Maria e jogar algumas migalhas de pão pelo caminho, mas desistiram da idéia .
- Jhonson, não faça isso, você é louco? A principal meta do país é erradicar a fome ...
- Ora, não seja tão extremista, eu vou erradicar a fome dos passarinhos.
- Não têm passarinhos aqui, só pombos cheios de doenças !
- Ah !!!
A noite chega e traz com ela medo e inseguranças ...
- Não se preocupe, eu estou aqui para te proteger Marry Jane.
- Não precisa, eu sou moderna e auto suficiente. Não tenho medo de nada, só do imperialismo norte americano nos deixar em condições mais deploráveis do que já estamos.
- Marry , acho que você está se tornando muito pró-revolucionaria. Pense bem, o que seria da gente sem o Mc e a Coca-Cola ?
- Seriamos felizes e saudáveis.
- Eu sou saudável.
- Não é não!!! Sua mente está contaminada com a dominação cultural alheia.
- Ah?
- Sem contar a opressão política e econômica. Sabe irmão, até hoje eu não engoli aquele boicote ao nosso café ...
- What ?
- Fock Jhonson. Do you don’t understand nothing if I say ?
- Understand I understand …mas você tem que melhorar um porquinho esse sotaque, you can do it ?
Aquela noite foi uma lástima para Marry Jane, com fome, frio e ainda tendo que falar no idioma do inimigo.Well, tudo pela diplomacia.
Para Jhonson também não foi fácil, aquele ambiente era muito hostil. Tá certo que ele não nascera em berço de ouro, mas quando bebê, teve seu próprio bercinho comprado no crediário. Aquela decadência social era uma verdadeira barbárie. O pior de tudo foi quando sua irmã se juntou na gentalha, em volta de um violão, e começou a chorar umas letras de MPB.
- “O povo foge da ignorância, apesar de viver tão perto dela ”(...) “Brasil, mostra tua cara, quero ver quem paga pra gente ficar assim” ...
A noite foi longa ... De repente, adivinhem o que eles encontraram ?
(não foi o Osama Bin Laden, nem Barack Obama, tentem mais uma vez) .
- Não acredito no que estou vendo Jhonson, olha lá: uma casa feita inteiramente de material especializado, cristalizado com açúcar, coberto com chocolate, caramelo e varias outras tentações apetitosas.
- Nossa, o que a tecnologia pode fazer, né ? E olha que moça bonita ali na frente, parece com a Xuxa.
- Não se iluda garoto, é apenas uma fulana cheia de plásticas, lipo e botox !
- Não me importo, vamos pedir um pedaço do telhado de waffer pra ela ?
- Eu odeio essa coisa de ficar com as migalhas do que o sistema me deixa, mas eu estou com tanta fome ...
- Então vê se usa desta ultra capacidade de comunicação nativa, típica das fêmeas de nossa espécie.
- Que- riii – dah, que casa liiin-dah!!! Nossa o IPTU deve ser altíssimo, mas você sabia que ao ajudar crianças carentes como nós, você pode constar na sua declaração de imposto e fazer negócio com o Estado assistencialista ?
- Ora fofinhos, entrem. Eu amo crianças carentes.
- Estou com medo Jhonson, isto está me parecendo uma ONG de fachada onde rola muita lavagem de dinheiro ....
- Não se preocupe Marry, ela só deve ser pedófila. Se acontecer alguma coisa a gente chama o “Cidade Alerta” e vende uma reportagem.Se não acontecer nada, a gente processa do mesmo jeito e vê se consegue dinheiro e fama ....
- Ora anjinhos, quem cochicha o rabo espicha, há há há!Entrem, vocês podem comer pudins, bolos , gelatinas, sorvetes, o que quiserem ...
- Moça, não rola um arroz e feijão ?
- Você não gosta de docinhos, menininho ?
- Mas se eu comer muito docinho, eu vou ficar gordinho e vai estragar os meus dentinhos.
- Mas é tudo light.É tudo muito nutritivo enriquecido com vitaminas, proteínas, carboidratos, fero, cálcio ... e ainda deixam os dentes branquinhos porque ...
- O QUE ? – disse Marry Jane- enfurecida com a propaganda enganosa.Eu sabia que você era uma assistente de vendas disfarçada, e que está querendo nos empurrar seus produtos industrializados, cheios de conservantes e outras porcarias químicas que vão nos causar câncer dentro de alguns anos !!!
Tomados de grande ira, eles queimaram-na viva com requintes de crueldade.
- Oh, o que fizemos Mary Jane, o que fizemos ?!?
- Calma, a gente fica no máximo até os 18 anos na Febem e já era.
- Só que eu sou o caçula, ahhhhhhhhh!
Foi exatamente nesse momento do dialogo que acabou o efeito da cola sob essas mentes jovens recém transviadas.
- Ah, o que aconteceu ?
- What ? Why ? How ?
É, eles estavam drogados e maltrapilhos ali na Praça. Os dois fizeram um tratado de que NUNCA mais iriam usar drogas ou discutir assuntos políticos. Voltaram para casa e levaram uma surra.
Porém, dentro de alguns anos Jhonson se tornou viciado.Passou por algumas clínicas para tentar se restabelecer.Atualmente ele está alienado como sempre, mas usuário só por hob.Investiu na carreira de modelo e está realizado e famosérrimo com um chavão que todos conhecem “Qué pagá quanto ? ”
Já Marry Jane se converteu de vez ao socialismo e milita incansavelmente em atos, protestos, passeatas... Atua também na área da educação e comunicação e sua principal meta é construir uma emissora comunitária que desmascare toda essa patifaria de mídia.
E os dois viveram ... viverão para sempre até morrer.
E parem, por favor, de acreditar em contos de fada.

Roberta Villa

Verniz

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Minha insana vaidade cheirava a verniz.
Quis fechar meus olhos, então, ver se a dor seria menor.
Fazia noite vazia. Eu estava só olhando a mim mesmo. Mas transgredi toda prisão ao perceber em volta tantas pessoas também solitárias observando qualquer lugar no tempo.Estava frio.A cena iluminada por velas tristes que cuspiam cera quente, o quente que arde, mas, inútil para aquecer.
A frente um caixão. O caixão de madeira envernizada luzente, matéria muito viva. Luzente com corpo morto em si.
Todos calados choravam, mas não juntos, cada qual com seu motivo particular. No externo constituíam-se como coro uníssono, mas no íntimo são instrumentos com timbres extremamente singulares. Pareciam não estremecer ao compor o canto mudo; e os óculos pretos combinando com a cor do traje de luto causavam cegueira endêmica. Até perfeitos e elegantes: traje de luto, óculos e choro contido. No entanto, aquele que prestasse, qualquer pouca atenção, perguntar-se-ia pra que tanta elegância. Todos afinados com minuciosa técnica, não havia quem fosse capaz de tentar soluço menos grave ou gemido mais agudo.
Observei aflito o brilho do caixão.
Não houve desespero descabelado, alguém disposto a ir junto. Na hora do enterro, não imaginava como seria, quem faria força suada e mal cheirosa para sepultar o que já está inerte?
Fiquei ali parado embora quisesse encontrar o maestro da orquestra, temia tropeçar entre os cegos. Aposto que acabariam, cada qual numa estação da vida, a pedir esmolas.
O caixão no centro, a morte ali, destaque.
A vaidade era o verniz.
Começava a entender todos os significados, os desejos, o último abraço, o adeus; e também os códigos de recomeço, descanso, descaso ou o encontro com Deus. Mas, respondam, por favor, quem morre a morte oposta?
Silenciosamente cada qual fazia seu próprio velório. Individualmente cada ser, seu próprio centro. Em todo este, não sabia onde estava minha posição – mas iria descobri-la ao enxergar para além da sombra angular de meu nariz.
Pois eis que tive pressentimento laico, sentia-me mais do que mero instrumento de velório... porque quebrei a solidão olhando em volta... agora sei exatamente: sou o caixão!
Sim, vivo - luzente por fora, e dentro, quanta matéria morta. Ficava ali como a noite fria e a vela chorosa - queima a pele com sua lágrima, tem luz tão fraca, irritante, que mais faz sombra do que ilumina. E as flores? Aquelas belas flores estranhas sem cheiro, enfeitavam a ausência da vida. Belas, enfim, em vão.
Morro hoje com saldo incalculável das vezes que fui enfeite no velório alheio. E quais serão os próximos a se enterrarem em si próprios agonizando o corpo com a matança da alma? Serás tu, ou quiçá teu vizinho? Basta abrir a porta de casa, há senil massa eufórica de velórios indo aos bancos, pegando ônibus, fazendo compras, entre tantas outras coisas andam deprimidos, pesados.
Quis fechar meus olhos, ver se a dor seria menor, mas doeu muito quando olhei para mim. Então, os abri seguindo a luz e quando tornei a realidade percebi que estava absurdamente –só- olhando para o espelho. Minha pele velava minha carne na mais vaidosa solidão. E num reflexo de vidro, assisti meu próprio velório. O que mais pesa é carregarmos sem ajuda de outros o nosso próprio caixão lustroso.

E a vaidade é o verniz.


Roberta Villa

José Antonio dos Santos

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Não usarei metáforas ou hipérboles, nem tão pouco eufemismos – há sim o tempo certo para ironias e poesias, mas, naquele instante senti-me muda e fria. O que narrarei em breve, posso lhes assegurar, por todas as desventuras deste nosso mundo de hoje, não é isto ficção. Pelo contrario, é uma descrição exata, como foto, de um fato refletido em minha íris e refutado em minha alma.Eu apenas queria fazer um conto sobre a vaidade, sim, quando chegasse em casa seria a primeira coisa a fazer.Como começar ? ... a vaidade, vaidade... pelo caminho certamente haveria de surgir à idéia!
Moro em um bairro periférico rodeado por casas sem reboque, crianças sem chinelos, mães sem pais ....enfim ...cercado pela carência de um detalhe que faz diferença, talvez,um olhar atencioso.Fazendo fronteira com o meu, há uma imensa ocupação de terra com casas de papel e pessoas de ferro, lá se chama Anita Garibaldi e todas suas ruas foram batizadas em homenagem á pessoas bravas : Zumbi dos Palmares, Antonio Conselheiro, Chico Mendes, Carlos Mariguela – acho bonito os nomes que escolheram.Um dia, ainda verei um logradouro com o meu nome ... talvez uma praça, melhor ainda, um viaduto. Bem, mas isso pouco importa agora, o que eu precisava era ter a idéia ... para fazer um conto sobre a vaidade.

Ao atravessar o beco, só faltará uma rua e uma pequena viela para chegar em minha casa, até então, não tive idéias quaisquer. Onde piso, tem oficialmente um nome registrado na prefeitura “Viela Beira Rio”, mas em verdade é apenas um atalho: sai do asfalto e entra no meio de duas casas de bloco, ando um pouquinho e já sinto um mau cheiro de esgoto; (...uma idéia sobre a vaidade ?).
Quando chove, mais forte torna-se o odor ao mistura-se com os cachorros e barracos molhados; (uma idéia sobre a vaidade...). De madeirite e improvisos são feitas as moradas ali abaixo. Eu viro para a esquerda - seria irracional escolher outro sentido - e estradinha segue estreitinha, entre uma parede de tábua e o fronteiriço córrego; (a vaidade ...vaidade ? !). Passo pelos garotos, sempre ficam ali à margem, pontuando o fim do caminho. Agora só faltará uma rua ...
Cada vez mais, aproximo-me de minha casa ...
Não sei como começar? Movo-me bem lentamente, talvez ainda dê tempo de pensar em algo; (eu preciso fazer um conto sobre a vaidade!). Silenciosa, cumprimento as pessoas com olhares, sorrisos (estou pensando!).Alguém me pergunta :
- Cê tem camisinha na bolsa ?
- Ih, não tem não, acabou !
- Ah ! Você nunca tem, cê sempre dá pros outros e esquece de mim ...
Trabalho como “agente comunitária de saúde”, e nesta hora, estava uniformizada, fazendo o percurso rotineiro, finalizando mais um dia de labor..
- Ah, você viu que mudou uma família nova pra esta rua? A moça tá pedindo pra cê í lá cadastrá eles ...
- Onde eles tão morando ?
- Naquela casa azul, abandonada.Eles invadiram ...
- Tá bom, to indo lá agora (e quando chegar em casa a primeira coisa que farei: o meu conto sobre a vaidade!).
Esta tal casa azul, há muito me causava curiosidade. É uma casa construída de comprido em um meio terreno. Apesar do muro, dava para enxergar que tinha quatro cômodos (espaçosa e de certa maneira confortável em relação a demais), havia os buracos para futuras instalações de janelas e portas, e estava rebocada e pintada à cal....mas, abandonada !? Realmente me chamou atenção o fato dela estar vazia há anos e bem ali – onde muitas famílias moravam em cima do esgoto, em corredores apertados, com chão de terra, parede de papelão, telhas quebradas ...e a construção azul, quase perfeita, até então vazia ? !
Aproximei-me.
- Oi, tudo bom, eu trabalho no posto de saúde, chama a sua mãe pra falar comigo !? (Às vezes eu pergunto até constrangida se está tudo bem ... em certas ocasiões é claramente impossível. Algumas pessoas se calam, apenas acenam com a cabeça , talvez não estejam respondendo minha ridícula saudação).
Aguardava a mãe, enquanto pude observar em volta um garotinho sem chinelo e nutrientes, a pisar numa imunda poça d`água com cara de fossa e um leve toque cítrico de limo marrom esverdeado.Nem deu tempo de ficar com nojo, a mãe chegou rapidamente e tomou-me a atenção. Era uma senhora de um meio século, parda, suada e gorda .
- Oi – ela me cumprimentou sem olhar nos olhos, mas ao abrir sua boca, esboçando um opaco sorriso, pude notar que os poucos dentes que tinha, estavam estragados ... aquilo devia doer! È sabido pela experiência popular, dor de dente é das piores que no mundo há... mas, existe a hora qual toda dor torna-se cruel e mui intensa então, nós deixamos de senti-la.Talvez, isso por sorte, ou quiçá a falta dela!? A Dona parecia não sentir.
- Oi, meu nome é Maria Marta, eu trabalho no posto de saúde e vim aqui para fazer o cadastro da sua família; eu vou precisar do nome e da data de nascimento de vocês. Então ela me disse seu nome, e fez um grande esforço para lembrar sua data de nascimento... não sabia ao certo quantos anos tinha, quantos filhos teve e quantos anos os pobres teriam. Mas a sua filha respondeu, e a partir daí, a conversa tomou rumo.
- A minha mãe tem trinta e dois anos. E eu tenho mais dois irmão, este aqui, e minha irmã de oito anos que está lá dentro.
Achei aquela menina perspicaz o suficiente para sobressair-se a miséria, a menina tinha um brilho nos olhos e uma firmeza decidida no tom de voz, digna dos grandes heróis anônimos da história.
- Qual seu nome ?
- Meu nome é Gisele e eu tenho treze anos.
-Gisele, que nome bonito! - ela sorriu, feliz por ter um nome bonito – Gisele é o nome da minha melhor amiga sabia ?
- É ? Eu acho o seu nome mais bonito do que o meu – eu sorri por ter um nome bonito - sabia que o nome da minha melhor amiga também é Maria Marta?
E naquele instante, por uma coincidência, nos tornamos melhores amigas. E nenhuma outra Gisele no mundo, pôde ser tão bela como ela, sem luz, sem água, sem jeito.Provavelmente, por todas as circunstâncias, ela não podia tomar banho, todos os dias, nem escovar os dentes após as refeições ...mas aí é um fato ameno, diante da situação de nem ter ao certo o que comer.Mas ela não me parecia fraca e faminta, achei-a ,sim, completamente limpa! Muito mais que fashion, ela era foda ao sorrir usando uma blusa de linho e manga comprida num dia de sol feroz. Foi tão só que descobri uma nova moda pop e descolada,há muito intitulada : sobrevivência.
O homem sujo ocupado com um cavalo, cara de doente, e sua carroça
cheia de matérias recicláveis e com um pouco de capim, estava se preparando para trabalhar e apressou Gisele, que o ajudava, enquanto conversávamos.Aquele era seu pai.
- Então, só falta você me falar o nome e a data de nascimento do seu pai.
- O nome dele é José Antonio dos Santos.
- José Antonio dos Santos! Sério? É o nome da minha rua! Que legal, o seu pai tem nome de rua .
Ele, apesar de indiferente, ouvia toda nossa conversa, e neste momento, prestou especial atenção, eu lhe disse:
- Eu sempre quis saber quem era esse José Antonio dos Santos, e hoje descobri que é o senhor.
- Prazer – ele me respondeu num misto de satisfação e surpresa – eu não sabia que tinha uma rua com meu nome.
- Tem, é a rua que eu moro, a rua de cima desta.
Ele sorriu, e o seu filho que estava com o pé em cima da água marrom esverdeada falou com orgulho “meu pai tem nome de rua !”, e deu risada.
A Gisele sabia que normalmente as ruas tinham nome de presidente, heróis, doutores... ela não deu risada, apenas parou com olhar reflexivo.
Terminei de fazer o cadastro e segui minha vida com a sagaz felicidade de morar numa rua com o nome de alguém conhecido. Apesar de não ser grande coisa morar onde moro, as coisas às vezes fazem um sentido esquisito.
Ao chegar em casa escolhi um sabonete no armário do banheiro, tomei banho, e depois me enxuguei numa tolha quase fofa, recém lavada com sabão em pó e amaciante...o que era mesmo que eu tinha que fazer quando chegasse em casa ?
Tentei me lembrar, era algo importante... andei pela casa ... fui até a janela : vi a carroça subindo a rua com Gisele e o José Antonio dos Santos.O que era mesmo que eu tinha que fazer ?

Roberta Villa

O olho que saí

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Aí, aí, aí, o ônibus pulava muito e em seu interior tudo permanecia sem inércia, porém, na mais profunda alienação. Pro alto e pra baixo, pro alto e pra baixo as pessoas, as idéias e os objetos. Paro alto e pra baixo as coisas se juntavam sem fazer conexão.

É, num repente surge no coletivo um sujeito-indivíduo desequilibrando a minha viagem plena. Era um garoto como tantos outros demais, que sobem e pedem ajuda e agradecem a Deus e descem e esperam... assim prosseguem a solitária romaria. Mas aquele era diferente. Trazia consigo os drops de sempre e um olho arregalado, sonso e inerte. (Apenas um dos olhos arregalado e sonso e inerte! Devia ser drogado, sim, sem dúvida. Mas por qual razão o ópio lhe afetaria apenas uma parte do corpo?... E no futuro, o que será do outro lado?!).

Aí, aí, aí, enquanto eu pensava subitamente o ônibus passou por uma curva fechada; assim todos os passageiros mantiveram os olhos abertos. Sorte teve o menino para diária petição - pois estava ao centro das atenções - não havia quem deixasse de observá-lo reparando seu olho estranho. Enfim, segue em anexo a ladainha tão clichê usada pelos vendedores de chiclé e afins:


É, “Senhores passageiros, desculpe atrapalhar a viagem de todos vocês...” (e todos os vocês arregalaram os olhos pra o garoto-indivíduo-senhor-dos-passageiros, como se ouvissem algo de novo. A atenção humana é aflorada por sensações sarcásticas, ou sou eu que me excedo?). “É porque preciso ajudar meus pais...!” (e todos permaneciam inertes como a vista sonsa). “O meu olho, como vocês podem ver, tem deficiência” (o evidente assusta tanto que ninguém se deu conta da nossa deficiência unânime, estatual e onipresente). “Por isso, este olho que vocês estão vendo é uma prótese e eu tenho que comprar outra nova a cada ano, mas é muito caro...”.

Aí, aí, aí, enquanto pulavam as idéias pro alto e pra baixo, a verdade desconexa foi esfregada em minha retina sem que eu pudesse desmenti-la. Não, não havia como! Asfixiando-me, a axioma sonsa e inerte é confirmada, fixada à rotina. Eu também preciso de uma nova todo ano, todo dia, a cada hora... eu também preciso e sei que é muito caro. E se não conseguíssemos, ficaríamos cegos? Mas valeria a pena tanto sacrifício, humilhar-se expondo as mais íntimas carências?”.

É, tive pena do meu irmão-garoto-indivíduo. O ônibus pulava batendo meu corpo contra o assento, desacelerando o ritmo do pensamento torto. Enquanto isso, todos os olhos passageiros grudaram-se na imperfeição daquele sujeito e ele, como se devesse algo, teve uma atitude decidida na pressa do agora: no presságio dum segundo arrancou seu olho arregalado nos expondo ao cerne buraco que havia no local do órgão da visão. Imenso fez-se o silêncio. Todos se voltaram para outros objetos, pessoas e idéias, porém, eu fiz questão de adentrar àquele túnel no corpo-carne do homem-garoto-indivíduo. Tentei em vão enxergar sua alma e meu olhar, sem me pedir permissão, tornou-se embaçado. O mundo a minha volta transformou-se num grande vulto !

Aí, aí, aí... (Neste parágrafo peço licença para registrar o protesto que veio a mim em forma de pensamento transcendente). Seria de extrema pieguice dizer-vos “uma lagrima caiu”. Ainda mais porque elas jamais caem – em verdade vos digo que estas emanam das minas dos olhos, rolam pela face e, a vós retornam pela epiderme absorvidas. Em vós, no interior ficam guardadas, com calma rancorosa concretizam o ciclo d´água. Quando menos se espera as esquizofrênicas revoltam-se e saltam de dentro d´alma, exigindo serem absolvidas. Pobres! Boa parte são prisioneiras da mágoa e por ela são consumidas; como vossos corpos um dia moribundos por vermes serão corrompidos.A magoa é a vossa moedora de cana – esmaga a doçura das lembranças rijas, liquidando-as num caldo de gosto esquisito.

É, o ônibus pulava, os objetos, as pessoas, as idéias. Pro alto e pra baixo a agonia do olho e as ires deslocadas, as pessoas fingindo não verem nada. “Aqui é para mostrar pra vocês que eu estou falando a verdade.” Mas alguém quer saber da óbvia verdade absurda? Eu tive medo, muito medo, enquanto tudo pulava tive mau agouro: vi o olho lançar-se ao chão junto com os drops-chicletes, e desta forma para sempre ficaria colado na carcaça do veículo; os passageiros, todavia desatentos, apressados, pisoteariam. Ele, ali se manteria viajando sem inércia, porém, na mais profunda alienação.

Aí, aí, aí... o discurso finalizou-se com indiferença dos ouvintes, enjoados pela desarmonia provocada naquele percurso. O deficiente colocou o olho que saí no devido lugar e todos respiraram aliviados. O meu decurso começava, eu não sabia em qual ponto descer. Vou desembarcar no ponto seguinte ao do olho que saí... e se ele for até o final?! Juro que mesmo lá me manterei estático, ainda que for necessário pagar nova passagem e regressar ao momento inicial. Só vou descer após o desfecho do indevido- garoto-olho-que-saí.

É impressionante a mobilidade do olhar humano, arregalando-se num instante e desprendendo-se quando não quer enxergar. Pois é, ao menos eu devia ter comprado um chiclé – tão barato…



Aí, aí, aí... meus caros, todos nós temos o olho que sai.




Roberta Villa

As menininhas

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Tinham rostos de porcelana e barrigas d’água.
A primeira, derradeira vez que as vi, lembro-me espantosamente bem. Meu corpo estava cansado e minha vista embasada pela fome, pelo sono. Era pontualmente meio dia, hora em que o sol faz-se imenso no céu , como grande bola de fogo quando a êxtase de sua luz é tão intensa que nenhum olho humano arrisca penetrá-la - hora em que Deus nos mostra que nós não somos bosta nenhuma mesmo. Normalmente eu costumo esperar pelos outros trabalhadores para podermos almoçar todos juntos, e pra quê? Eu sempre esperei por todos, mas até então, desta forma nunca ganhei nada.
Naquele dia fiz diferente. Caminhei na frente sozinho, sentindo aquela insuportável fome acompanhada por um vazio sem fim, e quisera eu que em pouco tempo fosse preenchido por boa mistura de arroz e feijão. Sei que os demais não poderiam sentir aquilo que estava em mim, por isso talvez caminhassem tão lentamente e despreocupados.Não os culpo, no entanto, não me conformo. Percebi, pela comprovada experiência, cada um deve seguir seu próprio caminho sem esperar por segundos ou terceiros. Pois é, pense bem numa coisa : milhares de pessoas podem passar fome, porém, certamente a fome que está em nós sempre será muito mais intensa que a de outro ser qualquer deste planeta; lógico, ninguém está dentro de nós para sentir o que sentimos, ninguém.
Justamente tratei logo de sentar-me à sombra da maior e mais próxima árvore que havia por lá. Não esperei por terceiros nem segundos... e os minutos que passaram por mim (reconheço, que não me transformaram, entretanto), me acrescentaram algo para todo o resto de vida.
Foi no exato momento em que me sentei a sombra que vi a menininha. Surgiu como se fosse forte raio de sol. Aparentava ter uns seis anos, era dona de um cabelo vermelho, cor de fogo, seus olhos profundamente amendoados davam um ar melancólico ao rosto de porcelana, contudo, a voz era firme e decidida como trovão. Sentada em cima de um muro alto, torto, esverdeado de limo, gritava:
-Raquel, Rebeca, Raquel, Rebeca !!!
Enquanto gritava, batia seus pés contra o muro - até pensei que pudesse quebrá-lo, ora, jamais conseguira - aquele muro muito imponente de cimento e blocos de pedra, e ela, apenas uma menininha.
E como se brotassem das pedras, de dentro do muro saíram mais duas menininhas, iguaizinhas a outra que eu vi, com os mesmos traços e rostos de porcelana, com o mesmo olhar melancólico dos olhos amêndoa. A única diferença que pude notar entre elas era o tamanho e a cor dos cabelos; a menorzinha, uns quatro anos, era loura como luz e vida e respondia pelo nome de Raquel. A outra, Rebeca, aparentava o dobro da idade da lourinha, tinha cabelos cor de terra, marrons de fios grossos, e naquele momento era a dona da bola.
- Miriam, eu truxi a bola.
- Vamos, saí daí de cima – gritavam, a pequena Raquel e a maior, Rebeca.
Então a ruiva menininha Miriam saltou, como pimenta, jogou a bola no meio da rua. E gritava, e pulava, e suava.Todas faziam como ela. E a rua era puro barro. Todavia, há um plano mágico no qual todo suor cai na rua para ir se misturar ao solo; depois ali nascerá uma plantinha (talvez flor de enfeite ou erva de chá, ou talvez erva-daninha). Assim as menininhas brincavam de bobinho com a bola.
Esqueci por um instante minha fome, estava com um questionamento fixo, da onde saia tanta menininha? Olhei bem para o muro, ele devia ter no máximo uns três metros de comprimento, elas tinham saído dali. Esmiuçando o olhar pude enxergar no final daquele muro havia uma abertura. Discretamente fui arrastando meu corpo e me distanciando da sombra para ver melhor da onde tinha saído tantas menininhas.
O muro cercava um terreno nocivo bem abandonado com muito mato e lixo, achei tão estranho e sujo, não acreditei que as menininhas tinham saído de lá. Mas bem no final do desamparo tinha algo parecido com uma casinha, as paredes eram tábuas de madeira por cima alguns pedaços de telhas formavam telhado.
Naquele momento o tempo parou, hipnotizado, só retornou quando percebi uma mulher pálida e sem face saindo do interior das tábuas e me olhando com angustia e reprovação. Caminhou até o muro e gritou:
- Entra, vocês não tão vendo que eu preciso de ajuda pra por o lixo pra fora.
E uma delas respondeu - já vou mãe. Rapidamente eu me levantei e fui ajudá-la, pretendia por o lixo para fora necessitava de ajuda forte e viril, pois era lixo de mais.
Fui ao encontro da mulher espectro e me surpreendi, pois o grande lixo do qual falara nada mais era que uma sacola de plástico com alguns papéis, fotos, e planos amassados. Ela recusou minha ajuda, baixou seus olhos para não me encarar. Sim, ela também tinha olhos, mas não eram amêndoas, apenas uvas-passa. Tive de analisá-la, pois se quis saber da onde vinha tanta menininha e se era ela a mãe, a resposta estava bem a minha frente. A mãe não tinha semblante nem nome, a mãe tinha um longo cabelo de cor desbotada, vestia uma saia cumprida como as irmãs da igreja e na barriga da mãe havia uma bola. Dentro da bola uma semente.
Mais uma vez, surgindo do nada das tábuas e atravessando as pedras saiu outra menininha. Fiquei impressionado - uma vez quando era garoto fui ao circo e vi sair coelho de cartola – agora, o que passava diante dos meus olhos era mais do que um truque, a Realidade. E a ultima e mais alta menininha que vi, na áurea dos dez anos, abraçou sua mãe num sentimento de cúmplice já podendo prever seu destino. Aquela mulher embora sem face era o seu espelho. Perguntei o seu nome.
-Débora.
Débora, a grande juíza, observava a tudo com coragem, às vezes interrompida por um longo suspiro. Ela não queria brincar com a bola, não tinha a mesma alegria insana das outras. Apesar do mesmo rosto de porcelana e de sua barriga d’água ela já não tinha as manchas de verme, nem os pés descalços. Parecia estar pronta para ir a algum lugar, no entanto, permanecia imóvel, como rocha, abraçava sua mãe, olhava amplamente pelas irmãs e às vezes suspirava.
Suspirava ...
As outras menininhas com prazer, jogavam a bola para o alto como se lançassem óvulos; a bola na barriga da mãe era pesada. A mãe desgostosa fitava a vista para baixo, paria pesos-pena no mundo. O mundo é uma grande bola e não tem pena, brincará com as menininhas. O ato consumado. E a outra suspirava.
Começou a ventar. A bola das menininhas perdeu a direção, a mãe gritou para que não perdessem a perdessem. O longo, liso e negro cabelo de Débora voou como um manto de luto no horizonte.O sol ficou tímido e se afastou um pouco. Meu horário de almoço estava por acabar, e eu nem sequer tirei a marmita da sacola plástica.
Não estava mais com fome, entreguei minha comida àquela Senhora e lhe disse “Deus te abençoe”. Ela não olhou na minha cara, segurou a sacola plástica em suas mãos e gritou: -Entra, vocês não tão vendo que preciso de ajuda pra por o lixo pra fora..E uma delas respondeu - já vou mãe.
Virei as costas, fui embora. Suspirei. Quis para sempre esquecê-las...
... como posso?

Roberta Villa