A noção de bruxaria como explicação de infortúnios para o povo Azande - Roberta villa

Posted: sexta-feira, 23 de janeiro de 2009 by O Blog dos Poetas Vivos in Marcadores:
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Sobre: Bruxaria, Magia e Oráculos entre os Azande , de Evans-Prichard



Os fatos não se explicam a si mesmos, ou fazem-no apenas parcialmente. Eles só podem ser integralmente explicados levando-se em consideração a bruxaria” (p. 54).
O pensamento Azande que engloba a ação da bruxaria não pode ser simplesmente afirmado como é o caso das doutrinas. Ao contrário, é um tema geral e indeterminado, e apenas é pronunciado em relação a fatos empiricamente atestados. Para os azande não existe a concepção de natural e sobrenatural como nós concebemos, e tão pouco lhes é possível fazer uma análise da bruxaria, uma vez que este fenômeno só pode ser descrito e entendido por meio da ação.

A maneira pela qual o povo Azande concebe a idéia de bruxaria é de fato peculiar quando comparado a nossa noção (sociedade ocidental moderna) sobre o mesmo assunto. Se para nós bruxaria remete ao sobrenatural e causa sensações de pavor, medo e repugnância, para eles a bruxaria é algo cotidiano, faz parte do mundo ordinário e causa uma sensação de raiva, rancor, vingança. Pois, na lógica Azande, bruxaria é o resultado da maldade e até mesmo inveja de um bruxo, que propositalmente causa infortúnios a alguém. E ainda, de acordo com esta perspectiva, o próprio bruxo também não é um ser extraordinário.
Todavia, dentro do sistema deste sistema de valores - que compreende a moral, o comportamento social, a religião e a linguagem - a bruxaria ocupa um espaço de destacada importância, como se estivesse onipresente sobre a vida da comunidade; boa parte dos insucessos e infortúnios que ocorrem podem ser explicados como o argumento: “a pessoa estava embruxada”. Para se entender a dinâmica da bruxaria entre os Azandes, deve-se a princípio observar que a maneira deles pensarem o mundo (a vida, o tempo, as relações sociais e com a natureza) não corresponde a nossa. Para nós, se uma pessoa sofre um acidente (como exemplos do nosso cotidiano: a pessoa é baleada, sofre um acidente de trânsito, é assaltada, etc.), nós somos capazes de reconhecer que existe uma relação espaço-temporal que envolveu determinada pessoa na situação do acidente (ela estava na hora e no local do acidente); contudo, compreenderemos a situação como “fatalidade”. Entretanto, nós não somos capazes de explicar (de acordo com as nossas concepções científicas e racionalistas) o “por que” justamente aquela pessoa foi envolvida no acidente. Contudo, a filosofia zande, pode, além de perceber a relação de tempo-espaço, também responder a pergunta: “porque aconteceu justamente com aquela pessoa?”. É então, que a bruxaria explica a coincidência desses dois fatos, os azande afirmarão: “aconteceu com essa pessoa porque ela estava embruxada”.
Desta forma “a bruxaria põe o homem em relação com os eventos de uma maneira que o faz sofrer algum dano” (p. 52).
Existem alguns exemplos que podem ilustrar esta relação: “se você perguntar a um azande porque ele disse que um homem estava embruxado, se cometeu suicídio em razão de uma briga com os irmãos, ele lhe dirá que somente os loucos cometem suicídios, e que se todo mundo que se zangassem com seus irmãos cometessem suicídio, em breve não haveria mais gente no mundo, se aquele homem não estivesse embruxado, não faria o que fez.” (p.54).
No entanto, apesar da crença na bruxaria para os azandes o mundo dos sentidos é tão real quanto para nós, o que significa que eles não ignoram que além da bruxaria também existe um caráter empírico na causa e no efeito dos infortúnios. Ou seja, eles não negligenciam o que chamam de “as causas secundárias” da morte, o que para nós é na verdade o motivo real da morte. Assim, para eles a morte natural e a morte por bruxaria estão suplementadas. É importante ressaltar que na cultura deste povo a morte não é apenas um fato natural como também é um fato social: quem morrer é um membro da comunidade, é um membro da família, tem o seu grupo de parentesco. Portanto, a explicação da morte através da bruxaria dialoga com os eventos sociais na medida em que lhes atribuiu um valor moral.
Outro exemplo, se um homem mata outro com uma lançada na guerra, o homicida é o meio que levou o homem a morte, porém, a bruxaria é o motivo que faz com que esse golpe seja fatal. Talvez, fique mais clara esta noção de bruxaria quando explicada por meio da metáfora “a segunda lança”. A segunda lança é nada mais do que aquela que numa situação de caçada confirma o golpe letal que estava presente quando foi lançado o primeiro golpe. Ou seja, a bruxaria é vista como um agente do infortúnio - como um algo que estará articulado às condições particulares, numa cadeia causal que ligará o individuo aos acontecimentos naturais que lhe provocarão dano. Desta forma, as condições peculiares que causam os infortúnios têm explicação.
Sobretudo, o modo como os azandes compreendem a pluralidade das causas nos leva a perceber que não são todos os fracassos e infortúnios que pode ser explicados pela questão da bruxaria. “Estaríamos dando uma imagem falsa da filosofia zande se disséssemos que eles acreditam que a bruxaria é a única causa dos fenômenos” (p.52), pois, para eles nem sempre os infortúnios podem se resumir à ação da bruxaria.

Existem também aqueles que estão associados à incompetência ou quebra de tabu, e ainda, ao não cumprimento de uma regra moral. Desta forma, fica muito claro que a mentira e o adultério não podem ser causados por bruxaria. Bem como, se um homem mata outro de sua tribo por meio de faca ou lança, não é preciso recorrer ao oráculo para saber se houve bruxaria e de quem se vingar, pois o algoz é obviamente o próprio homicida. “O zande aceita uma explicação mística das causas de infortúnios, doenças e mortes, mas recusa essa explicação se ela se choca com as exigências sociais expressa na lei e na moral” (p. 57). Existem também os casos de quebra de tabu e bruxaria co-relacionados, como quando uma criança adoece e morre. É sabido de todos que uma criança pequena quando adoece é porque seus pais tiveram relações sexuais antes dela ser desmamada, neste caso, é uma quebre de tabu. Porém, se em decorrência dessa doença a criança morre, então, é porque ela estava embruxada. No entanto, o ato da quebra de tabu não pode ser explicado como resultado de bruxaria. Efetivamente uma pessoa só pode ser declarada embruxada quando age de acordo com as regras tradicionais, executa seus trabalhos com competência, e mesmo assim sofre infortúnios e fracassos. No mais, é importante analisar que a bruxaria tem suas regras de pensamento e lógica próprias

O Pouso de Orides Fontela - Roberta Villa

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Silêncio, Metalinguagem e Transcendência.


A lírica moderna, desde Rimbaud e Mallarmé, converte-se cada vez mais, em magia da linguagem.Nas teorias poéticas do séc XX aparece também o conceito de sugestão, que começa no momento em que a poesia, guiada pela inteligência, desencadeia forças anímicas, emitidas através de forças sensíveis da linguagem, ritmo, som e tonalidade.Para esta poesia, real não é o mundo, mas apenas a palavra[1].
Como esclarece Hugo Friederich, para se interpretar a poesia moderna é necessário atentar minuciosamente para sua técnica de expressão: o estilo que transforma o que é real e considerado normal. È fundamental compreender os propósitos desta poética, sabendo que é na complexidade hermenêutica de sua linguagem que estão articulados os verdadeiros conteúdos, motivos e temas.Como ponto de partida, deve-se saber que um dos princípios da nova poesia está na discordância entre signo e significado, na possibilidade de reinventar os símbolos e os sentidos das palavras.
Segundo Cleri Bucioli, a marca moderna da escrita de Orides Fontela reside no seu fluxo continuo de reconstrução, trabalhando as malhas do tecido da linguagem à procura do novo.Fruto de uma tensão permanente entre o eu e a palavra, a poética de Orides constrói-se como exercício reflexivo de composição e transposição, por intermédio do qual a poeta localiza-se a um passo do desconhecido.Como comenta o critico Davi Arrigucci, a transposição:

...pode ser entendida tanto no sentido da procura além de um limite, como no sentido metáfora, de uma linguagem que vai além de si mesma para dizer ao outro, a outra coisa, a semelhança que esta além.

Cleri Bucioli afirma que a construção poética de Orides alicerça-se na luta entre o eu e a palavra.Consciente de que a poesia se faz - como propõe Mallarmé - com palavras, Orides trabalha incansavelmente a linguagem, pois a essência da poesia, ensina Heidgger, é concebida como essência da linguagem. No mais, a essência da linguagem não se esgota na significação, ela não se limita no ser; a linguagem, diz o filósofo, “é a casa do ser”, edificada em sua propriedade pelo ser e disposta a partir dele. Orides traz em seus textos, enigmas apresentados por meio de objetos cotidianos focalizados fora de seus contextos originais, deixando ao leitor, rastros fragmentados da mensagem a ser decifrada.Priscila Paschoa
[2], em seus estudos sobre Orides Fontela comenta:

Pela forma, entende-se melhor o referente, pois, em razão das proximidades das correspondências, é no simulacro dos signos que se consegue expor com mais precisão os traços mais identificáveis dos objetos da realidade empírica. Quanto mais um texto se volte para si mesmo, mais fará transparecer preocupação artística... ativando o plano estético da mensagem verbal, associado de maneira particular com a referida realidade.

Para tratar e exemplificar a sutil, contudo, audaciosa linguagem poética de Orides Fontela, bem como as influências modernas que estão contidas em sua engenhosa criação, foram escolhidos dois de seus poemas, publicados em distintos volumes, porém, que apresentam um dialogo explícito – a começar pelo titulo: Pouso e Pouso (II). Norteada pelo do conceito da metalinguagem, o qual foi vastamente abarcado pela literatura contemporânea, a análise destes poemas visa tocar o enigma do “pouso”, do “pássaro” que nos conduz ao silêncio, travando a angustiada reflexão sobre a vida, a existência e a linguagem. Sabe-se que após Baudelaire, o poético concentra-se cada vez mais na idéia do poema como realidade em si, auto-suficiente, então, a poesia alcança o estágio da auto-reflexão, tornando-se conteúdo de si mesma. Por tudo, justifica-se toda sua hermenêutica e imersão subjetiva repleta de ressonâncias.
O poema “Pouso” foi publicado em seu primeiro livro Transposição (1969). De acordo com Cleri Bucioli esta obra já anunciava os sua proposta lúdica, a fim de alcançar o “além de”. Um dos grandes desafios em Transposição é reconstruir a linguagem poética não como palavra de ornamento, mas, antes, como fonte de sentido.A epígrafe que abre este livro é composta por versos da própria poeta:

A um passo do meu próprio espírito
A um passo impossível de Deus
Atenta ao real: aqui.
Aqui aconteço.


A tensão dramática é o primeiro sinal da voz lírica de Orides que se apresenta pronta para transpor. A seguir, o poema “Pouso”.

POUSO

Ó pássaro, em minha mão
encontram –se
tua liberdade intacta
minha aguda consciência.

Ó pássaro, em minha mão
Teu canto
De vitalidade pura
Encontra a minha humanidade.

Ó pássaro, em minha mão
Pousado
será possível cantarmos
em uníssono

se és o raro pouso
do sentimento vivo
e eu, pranto vertido
na palavra?

Este poema é composto por quatro quadras, e, recorre a anáforas para reafirmar seu mote, desta maneira constituindo seu refrão: “Ó pássaro, em minha mão”. Nota-se, contudo, a ruptura deste ciclo na apresentação da quarta e última estrofe; exceção esta, que traz a relevância de um questionamento.
A ausência de rimas, marcadas pelo verso branco – herança do Modernismo – sugere outras formas de trato com a linguagem, possíveis no nível fônico (marcados pela coincidência sonora), sintático e semântico.
O ritmo
[3] composto através do paralelismo, é freqüente na poesia de Orides Fontela, que por vezes utiliza-se da repetição do verso inicial de cada estrofe para a construção de seus textos.De acordo com Priscila Paschoa, com esta ação a poeta está sempre a recuperar o movimento determinado pelo ritmo, realizando assim, um trabalho semelhante ao de tecer: desfazendo laçadas e soltando os fios da linguagem.Como lembra Cleri Bucioli:

... fiar equivale a recomeçar e recomeçar é o eterno retorno (à volta sempre ao mesmo fio) como trabalho infinito, incansável e paciente de quem experimenta a criação poética.

Por meio deste ritmo, o poema “Pouso” se organiza numa esfera concisa, entretanto, com possibilidades múltiplas, à medida que, cada vez que se retorna ao signo pássaro, mais abrangente se tornam suas possíveis significações. Octavio Paz
[4] afirma que o poema apresenta-se como círculo fechado em si mesmo, que está sempre a repetir-se e recriar-se. Ciclo este, hermenêutica e engenhosamente tramado, em que o ritmo contribui como elemento norteador dos sentidos.
A saliência do ritmo também é percebida na extensão de cada verso, alternados entre longo e curto. No poema analisado, os versos de cada quadra compõe uma seqüência irregular de silabas poéticas, organizados pela técnica do enjambement.
[5] Nota-se, que o poema apresenta a seguinte seqüência:
1º estrofe: 7, 4, 5 e 6 sílabas tônicas/ 2º estrofe:7, 3, 6 e 7 silabas tônicas;
3º estrofe: 7, 6, 3 e 2 sílabas tônicas/ 4º estrofe:6, 6, 6 e 3 sílabas tônicas..


Disposto através do verso livre, esta flexibilidade na métrica do poema cria um desenho no contorno de cada frase poética, semelhante ao ir e vir de uma maré: que se despeja e contrai-se imprevissívelmente, ou também, comparável a uma linha, que no ofício da costura, desprende-se, vai longe, e depois volta para dar o ponto. O ato de despejar-se, soltar longe a linha da linguagem, e depois se contrair e recosturar a significação, está associado à artimanha criativa de Orides Fontela, pois, ao mesmo tempo em que ela derrama o Eu lírico e traspassa a linguagem concreta, logo ela retoma sua retração, e sagazmente pontua com diversos elementos simbólicos, pistas que completam seu enigma. Esta pulsação do ritmo,cria uma sensação de movimento, entretanto, ao iniciar-se a quarta estrofe, percebe-se que esta alternância é contida, cedendo vez a uma seqüência de três sextassílabos consecutivos, que caracterizam inércia e rigidez; por fim, o ultimo verso do poema apresenta três sílabas tônicas:

se és o raro pouso
do sentimento vivo
e eu, pranto vertido
na palavra?

Ao decrescer a quantidade de silabas tônicas para concluir o poema o poeta vai de encontro ao silêncio.Na quarta e ultima quadra, há a sintetização da mensagem, todavia, esta não vem responder ao enigma travado, e sim, acrescenta-lhe um direcionamento reflexivo.
A última estrofe suscinta em si as particularidades do todo, com isto, aproxima-se da estrutura dissertativa, quando ao final da argumentação, instaura um parágrafo conclusivo, necessariamente, retomando aquilo que já foi dito. No entanto, o poema “Pouso”, não é finalizado com uma conclusão convencional, e sim, leva ao íntimo do Eu-lirico, à medida que revela o seu questionamento. Segundo a filosofia, interrogar é a única maneira de concordar e reafirmar o nosso ponto de vista; Heidgger ensina: questionar é elaborar um caminho, construí-lo
[6].



Nota-se, nesta finalização do poema, além da ruptura do ritmo através da quebra do paralelismo, há também uma interrupção da contemplação melancólica que dá vez a uma linguagem mais dura.O questionamento transcrito, nos remete a um aprendizado que necessita saber, rever os conceitos – o que, na maioria das vezes, é um processo duro e de desencantamento do mundo.
Quando se atenta minuciosamente ao percurso dos sons observa-se ao longo do texto que a melancolia expressa na sonoridade nasal e branda do “M” e “N” (que remete a uma tonalidade subjetiva), vai se fundindo a concretude dos sons consonantais explosivos “T” e “P’.

Ó pássaro, em minha mão
encontram –se
tua liberdade intacta
minha aguda consciência.

Percebese que na primeira estrofe são predominantes os sons nasais.

Ó pássaro, em minha mão
Teu canto
De vitalidade pura
Encontra a minha humanidade. No entanto, com o decorrer do poema, os sons nasais fundem-se aos explosivos.

Enfim, a quinta e última estrofe é rendida pela predominância dos sons secos, que reiteram a rigidez do mundo concreto e empírico:

se és o raro pouso
do sentimento vivo
e eu, pranto vertido
na palavra?

Ainda, em relação à sonoridade do poema, é importante ressaltar que a recorrência do vocativo: “Oh pássaro”, evidencia o quanto o Eu lírico está aflito a chamar, evocar sua presença.Infere-se, com o verso: “Ó pássaro, em minha mão”, que o poeta procura o dialogo com o pássaro, busca por ele ser ouvido,e através dele compreender-se.Somando-se a esta tonalidade angustiada, estão as sonoridades presentes ao longo do texto que acrescentam sugestivamente uma idéia de súplica.
Sobretudo, para se chegar à essência da significação do poema “Pouso”, é necessário compreender que por meio de elementos do mundo concreto Orides atinge a transcendência. As relações de sentido travadas a partir dos termos “pássaro”, “pouso” e “minhas mãos”, são metafóricas. A principio, é fundamental saber que a autora – devido a seu projeto de literatura auto-referencial - busca consciente a simbologia consagrada tanto em “mão”, quanto em “pássaro”, para repesá-las. Em relação a esta característica, Alfredo Bosi argumenta:

Reinventar imagens da unidade pedida, eis o modo que a poesia do mito e do sonho encontrou para resistir à dor das contradições que a consciência vigilante não pode deixar de ver.
[7]

O termo “mão”, simbolicamente representa a força, e a proteção dada de maneira generosa e fraterna. A mão, também pode ser entendida como fundamental para a expressão humana: é usada em gestos de saudação de benção, de cura, adoração, juramento. A posição das mãos pode representar gestos positivos de paz, aliança; ou negativos, como arrogância, vingança, deboche.Muitas vezes, as mãos falam pelo sujeito: mandam, exigem, prometem, dispensam, ameaçam, suplicam, questionam, negam.No caso de Orides, quando utiliza a imagem “mão” no poema, esta, abriga em si um outro símbolo: o pássaro.
O termo pássaro
[8] tem uma simbologia que, de modo geral, representa as entidades psíquicas de caráter intuitivo e mental, proveniente dos abismos do inconsciente.Este ser alado é uma notável sugestão da transcendência e pode, em alguns casos, indicar a intuição genuína como uma verdade invisível que se auto-realiza. O pássaro também simboliza a auto-análise, a reflexão.
Aproveitando destas imagens simbólicas e recontruindo-as, Orides Fontela tece um poema repleto de sentidos ocultos. Nele, a maneira contemplativa em que é apresentado o objeto “pássaro”, singulariza-o como representante da liberdade. Contudo, percebe-se que para o Eu-lirico torna-se um desejo obter esta liberdade intacta: “será possível cantarmos/ em uníssono”.
O elo de ligação entre o poeta e o pássaro de vitalidade pura, é a mão que o abriga durante o pouso. Semanticamente, o substantivo “Pouso” remete ao lugar onde alguém ou alguma coisa costuma estar ou descansar; e o verbo “Pousar” significa assentar, baixar, tocar a terra, recolher-se em pousada, descansar.Entretanto, ao pousar, ficar em estado de inércia, a ave do sentimento vivo principia o sentido ambíguo do poema:


o poeta contempla o pássaro (representação da liberdade através do vôo);
o poeta tem o pássaro na mão pousado (o pouso indica a inércia);

Se o poeta só pode ter o pássaro em sua mão pousado, então, lhe é subtraído o vôo, portando, não lhe é permitido alcançar a liberdade, o canto de vitalidade pura.


Ao contrario do pássaro, o elemento humano e pesaroso da consciência interrompe sua conquista.


Ao analisar a construção do poema, vê-se que as características do Eu-lirico estão contrapostas as do pássaro, os elementos do pássaro são: a liberdade intacta, o canto de vitalidade pura e o sentimento vivo; os elementos do eu lírico são: aguda consciência, humanidade, pranto vertido na palavra. Estes eles se relacionam por meio do objeto Mão, que torna-se um elo de ligação entre o pássaro e o eu-lírico.
Esta contraposição das características gera uma tonalidade apreensiva, no momento em que a consciência - faculdade racional de julgar os próprios atos, sentimento de dever, percepção da própria realidade -, acentuada pelo adjetivo “aguda” – afiada, intensa, violenta, é justamente o que impede o Eu lírico de realizar o vôo. Voar, entre outras definições do dicionário, é decorrer rapidamente o tempo, dissipar-se, desaparecer no ar. Voar é tirar os pés do chão; para o poeta, transcender a concretude das palavras e atingir um novo plano de expressão. Uma expressão intacta como a liberdade do pássaro, pura, ilesa dos conceitos massificados e do julgamento do senso comum.
Dando seqüência a esta relação de contraposição, há a expressão “canto de vitalidade pura”, canto, que também tem o caráter de “poesia lírica”, portanto, canto de vitalidade pura pode referir-se à genuína lírica quem tem a força da vida. Ora, se tem a força vital, se é genuína e pura, poderá ser ela a face mais plena da vida?
No poema, o pássaro é uma figura intercambiante, é quem possui “o canto de vitalidade pura”.E para o poeta, resta a humanidade. Humanidade, aqui, inverte sua conotação comum que abrange a complexidade e longevidade das proezas do homem, assumindo assim, um efeito de limitação, pois o homem não é livre porque ele é humano – preso a diversos conceitos e moralidades que lhe são impostos.Seguindo esta reflexão, é importante ressaltar que esse conjunto de normas e padrões sociais – ditados por forças políticas e econômicas - só foi possível de se estabelecer através da expressão e comunicação humana. Tem-se, então, uma outra indução ao poema e suas simbologias:
A mão representa a expressividade humana que é manipulável e manipuladora, portando, jamais poderia conter as características do pássaro: intacto, livre e puro. Não obstante, o pássaro representa a livre expressão, genuína, criativa.
Ao dizer que o pássaro é “o raro pouso/ do sentimento vivo”, tem-se a seguinte idéia:
o pássaro é o pouso do sentimento vivo;
o pássaro executa o raro pouso;
se o pouso é raro, logo, também é raro o sentimento vivo.

Se é raro o sentimento vivo, tem-se a seguinte inferência:
é comum o sentimento morto.

Ainda, contrapondo o homem e pássaro, se deduz: o pássaro tem o sentimento vivo, o homem tem o sentimento morto.
Sentimento, conforme consta no dicionário representa o ato de sentir, ou, a consciência intima. Mas então, como sentir quando não se está vivo – ou seja, quando nos é retirado de vez todos os sentidos: visão, olfato, paladar, tato, audição? Será então, que a humanidade da aguda consciência poderá ter sido rescindida de seus sentidos? Quiçá os sentidos foram ocultados na concretude em que nos encontramos alicerçados?
Cleri Bucioli, em seus estudos, explana sobre o processo do “apagamento do eu”, que remete à questão da “consciência íntima”. Explica, que este fenômeno, na lírica, é direcionado através da densidade na concisão do discurso.

"Em certos poemas, apesar da capacidade do enunciador em apresentar minúcias do objeto, o que pode inicialmente servir como argumento para sustentar uma proximidade com o ambiente, pelo processo de fazer com que detalhes deste ambiente transpareçam nas sensações bastante particulares do sujeito poético, nota-se, na sobreposição da imagem a voz lírica. Esta sensação dolorosa de que o poeta morre um pouco a cada poema, parece onipresente em Orides.
(...) o desligamento da voz que faz com que o autor entre em sua própria morte e a escritura comece, realiza-se desde que um fato é “contado”, para fins intransitivos, e não para agir diretamente sobre o real, isto é, fora de qualquer função que não seja o exercício do símbolo"
.
[9]

Orides Fontela ao compor sua lírica de sábia resistência a dissolução do Eu, recorre aos recursos hermenêuticas aproveitando-se de símbolos e metalinguagem, atingindo profundamente a função lúdica da palavra poética. Quando a poeta reorganiza as significações dos objetos, recria o mundo real, para assim, observá-lo sob um outro prisma.Como reflete Alfredo Bosi em seu ensaio “Fenomenologia do Olhar”, é necessário compreender o real fora de nós, enxergar além da superfície. Assim faz Orides ao travar no papel palavras que encaram e excedem os limites da concretude da vida, do tempo e da própria palavra, despertando novas formas e perspectivas.


“O que nos vemos das cousas são as cousas.(...) O essencial é saber ver.
(Alberto Caero).

Sob a pele das palavras há cifras e códigos. (Carlos Drummond de Andrade).


O sentido normal das palavras não faz bem ao poema. (Manoel de Barros).

Seguindo esta tradição, o poema “Pouso” de Orides Fontela brinca de esconder com os sentidos, ou seja, diz algo significando outro, consolidando-se por meio de metáforas.No texto analisado coexistem elementos de duas realidades, a do mundo empírico e aquela constituída com as significações poéticas. Todavia, esta poesia torna-se auto-referente: metalingüística. Contudo, o signo lingüístico não perde seu valor original, e sim, lhe é acrescentado um novo valor, capaz de submergir a alma lírica e retornar ao texto poético renascido e transcendente; assim outras possibilidades semânticas passam a existir naquele texto e tão somente nele.

A poesia só existe graças a uma recriação de linguagem, o que equivale a um rompimento na tessitura lingüística, das regras e da ordem do discurso.
[10]

Retomando as metáforas do poema tem –se as seguintes relações: o pássaro pode representar a liberdade ou a expressão livre; as mãos do Eu lírico (que podem ser entendidas como sua linguagem, sua cultura) são o instrumento de ligação entre ele e o pássaro.O pouso é o momento no qual a liberdade, ou ainda a poesia (o pássaro) está em contato (nas mãos) do Eu-lirico.Então ele o observa, o contempla com sua humana consciência. O poeta deseja cantar (poetizar) no mesmo tom do pássaro, afinação esta de vitalidade pura. Contudo o pássaro é que possuí “o raro pouso” (os sentidos intactos); e o poeta apenas o pranto, vertido na palavra.Esta representação melancólica da relação homem e linguagem, ou ainda poeta e poesia, é também uma reflexão do quanto a poética, por mais que busque transcendência, não deixa de criação humana.Sendo humana acarreta sofrimento e incompletude.
Desta forma, Orides inverte completamente a mimese convencional, o pássaro então, que pode ser significar a essência da poética, sendo metafórico e abstrato, torna-se mais real que a própria expressão do Eu lírico. A poética, representada na figura do pássaro, é pura e viril. O poeta tem apenas a conversão de seus sentidos - mirrados, humanos, racionais - em palavras no papel. Ao poeta resta a incansável busca pela poesia.
A aguda percepção de Orides Fontela medita sobre temas universais como o ser, o tempo e a palavra.Assim, refletindo sobre o existir, transcreve para sua lírica o momento em que o Eu dispõe-se a enfrentar e recriar o mundo empírico do aqui e agora; e desta forma, acaba assimilando a concretude do que há na realidade.









È essencial ressaltar que a obra de Orides Fontela traça um percurso metalingüístico que remete a um ciclo de apreciação da leitura e de produção literária. Todavia, seus poemas estão em constante diálogo entre si, característica que, Cleri Bucioli afirma ser o exercício pleno de transposição da palavra poética, resultante de um projeto de escrita. Através desta intertextualidade, Orides demonstra ao leitor o quanto a palavra poética é infinita, estando sempre a ressurgir com novidades, mesmo por meio de recursos aparentemente já esgotados.
Por meio deste ideal de recriação, Orides confronta a existência humana em relação à realidade empírica, lançando-se destemidamente num plano de retorno ao subjetivismo. Bucioli alega que, ao demonstrar a inutilidade da razão, a poeta consagra seu maior ato de resistência e crítica social:
A grande ironia de seu texto revela-se não na impossibilidade de dizer, mas na consciência da inutilidade de qualquer explicação.
[11]

Os princípios de redundância que regem a escrita de Orides, nitidamente encontrados ao longo de sua obra, sobretudo através de seus intertextos, são de extrema relevância para compreender a magnitude desta poeta.
No trajeto de seus textos, o mecanismo da redundância é sabiamente articulado.Baudelaire já dizia que para se penetrar a alma de um poeta é preciso perceber seu vocabulário recorrente – o estilo é a matriz de toda criação, é a maneira implícita e insistente pela qual o autor expressa algo, ali se revelam suas marcas pessoais.
Com a análise do poema “Pouso”, percebe-se, em síntese, que o pássaro pode representar a própria poesia. Sendo assim, o pouso significa o dilema do poeta, a escarpada tentativa de poetizar, de encontrar-se frente a sua lírica. Vejamos agora o poema Pouso (II), publicado no livro Alba (1983). Ao retornar em sua gênese – o livro Transposição – Orides amadurece sua lírica. Solitária, sua voz prossegue perpetuando em busca do novo.



Conforme explicação de Cleri Bucioli, “Alba” é uma forma de composição poética proveniente da lírica francesa provençal, que, ora alegre, ora tristemente representa uma saudação pela aproximação do Sol.Entende-se em Orides, este Sol como símbolo de luz, de revelação; assim, o livro Alba vem resplandecer em seus versos a tensão contrária do Eu lírico exposto à palavra austera, que rompe o silêncio. Neste livro a linguagem é mais direta, entretanto, mais severa, e a poesia é um desafio ao branco silencioso que habita em cada página.Dilacerando o cerne das palavras em busca de seu néctar, surge a redescoberta dos sentidos. Minuciosamente desvenda-se o caminho do “além de”: a transcendência.

POUSO (II)

Difícil pra o pássaro
pousar
manso
Em nossa mão – mesmo
aberta.


Difícil difícil
Para a livre
Vida
repousar em quietude
limpa
densa

e inda mais
difícil
- contendo o
vôo
imprevisível –


mutuar o seu canto
no alvo seio
de nosso aberto
mas opaco

Silêncio.


A estrutura do poema “Pouso (II)” é explicitamente livre, ou seja, não segue tipo algum de metrificação ou regularidade.De imediato, percebe-se que cada estrofe contém quantidade variável de versos, sendo que a última abrange apenas uma palavra: silêncio.
Os versos brancos, distribuídos no percurso destas estrofes uniformes, surgem como se pretendessem rasgar o vazio da página. A disposição dos versos sugere através da forma física do poema a idéia de fragmentação - como se o texto estivesse estilhaçado e cada frase poética fosse um caco lançado.Esta visão fragmentada da realidade demonstra a capacidade de Orides Fontela em transcrever para sua lírica uma esfera da realidade, convertendo-a em subjetividade, literatura e arte.
Ao todo, esta poesia é composta por vinte e um versos. Nota-se, contudo, que o texto busca determinado, fixo, pela concisão.Dez de seus versos – praticamente a metade do poema – são compostos por apenas uma palavra: pousar, manso, aberta, vida, limpa, densa, difícil, vôo, imprevisível e silêncio.
Diante deste trabalho de lapidação, palavra por palavra, escolhidas com precisão – o que lembra o poeta engenheiro João Cabral de Melo -, é fundamental atentar para a maneira como estão grafadas centralizadas, deixando para traz o branco do papel, um vazio, o silêncio.

Difícil difícil
Para a livre
Vida
repousar em quietude
limpa
densa

Kandinsk
[12] expressando-se a respeito das cores, afirmava que o branco é símbolo de um mundo onde todas as cores, em suas qualidades e propriedades tenham se desvanecido, portanto muitas vezes é considerado uma não cor. O branco para o sentido da visão é como o silêncio para a audição.

O silêncio não é diretamente observável e, no entanto ele não é vazio, mesmo do ponto de vista da percepção: nós o sentimos, ele está lá (no sorriso da Gioconda, no amarelo de Van Gogh, nas grandes extensões, ns pausas).
[13]

Os espaços brancos deste poema, que são como pausas num pentagrama, devem ser respeitados durante a leitura.O ritmo é prosaico, contudo deve ser considerado de acordo com a disposição dos versos, que novamente se apresentam numa ordem alternada e indeterminada com a técnica do enjambement , permutando entre longos e curtos.

Difícil pra o pássaro (verso mais longo);
pousar (verso curto);
manso (verso curto);
Em nossa mão – mesmo (verso mais longo);
aberta. (verso curto).

Ao ler o poema respeitando suas pausas, percebe-se que estas causam a impressão de uma atmosfera rarefeita, de uma real dificuldade no respirar, no falar, no expressar.Deste modo, obtém-se uma tonalidade resguardada, reprimida. Num tom confessionário o Eu-lírico parece revelar um algo misterioso, secreto - há uma sensação de surpresa, a cada verso que se inicia.
No poema, o silêncio é uma espécie de linguagem da ausência, pois consegue dizer algo mesmo não tendo conformação física para isso.
[14]

Não é fácil para o poeta dizer explicitamente aquilo que deseja ou necessita expressar – o que se torna evidente para o leitor. A insistência persuasiva do adjetivo difícil (presente quatro vezes no texto), também é reiterada por outros adjetivos que se associam a seu grupo semântico: denso e opaco.
Denso, de acordo com o dicionário, representa algo espesso, cerrado, compacto; no sentido figurado, escuro, carregado: sendo escuro, torna-se difícil de enxergar, compreender. Opaco significa algo não transparente, que não deixa passar luz, escuro, sombrio, turvo; logo, se é opaco é difícil de se permear.
Segundo definição de Benedito Nunes, quando um autor repete insistentemente uma determinada palavra, como faz Orides ao escrever “dificil difícil”, ele aplica a técnica do desgaste:
...como se, em vez de escrever, ela descrevesse conseguindo um efeito máximo de reflexo da linguagem que deixa a mostra “aquilo”, o inexpressável. Tal efeito é semelhante àquele de estranheza que se pode obter repetindo vezes sem conta uma palavra banal qualquer: casa, monte, quietude, etc
[15].

Por meio destes adjetivos, compõe-se a voz lírica do poema, angustiada, no entanto lúcida sobre sua condição, ciente de que sua missão – o desafio da linguagem – não é algo fácil. Logo, o sujeito lírico é como um herói trágico; ao iniciar o poema com o adjetivo “difícil”, enuncia ao leitor sua sina.
Todavia, para trazer a tona o inexpressável, Orides Fontela vai ao cerne das palavras e colocá-as, quando opostas, frente a frente. Duelando com os sentidos nesta batalha o objetivo é a conversão do mundo empírico no abstrato. Observa-se que, mesmo sendo repetidos constantemente os adjetivos de valor negativo, turvos, estes estão diretamente ligados a outros adjetivos que são claros e trazem uma idéia positiva ao objeto:

Difícil difícil
Para a livre
Vida
repousar em quietude
limpa
densa


As ultimas palavras desta estofe, dois adjetivos: limpa e densa, abarcam diferentes campos semânticos. Ambos referem-se à mesma palavra: repousar. De acordo com a própria estrutura do verso, o ato de repouso envolve necessariamente a quietude, o silêncio. O próprio dicionário já coloca o termo repousar como sinônimo de quietude, descanso:
“repousar em quietude”.

Contudo, limpo traz um significado (insento de imundices, sem mancha, puro, imaculado, claro) e denso refere-se a uma imagem oposta (escuro, carregado). O efeito criado com a ambigüidade “repousar em quietude”, seguido pelo paradoxo “limpo”, “denso”, expõe ao leitor a complexidade do ato. Se o pouso - que é como a quietude, o silêncio - ao mesmo tempo pode ser limpo e denso, ele traz consigo imagens positivas e negativas. Trava-se então o dilema entre expressar-se ou calar-se.


A situação proposta no poema “Pouso (II)”, pode ser verificada ao se analisar o trajeto ambíguo dos adjetivos utilizados. É notório o quanto as imagens apresentadas no texto são encaminhadas de acordo com o esta adjetivação. Neste sentido, a articulação paradoxal destes termos obtém por conseqüência a formulação de estranhamentos.Ao todo, no poema, existem quatro campos semânticos, que permutam entre luminosidade e obscuridade, estes são:

(mais negativo) referente à dificuldade: difícil, denso, opaco;
(mais positivo) referente a “Alba”: limpo e alvo.

E há também dois grupos de adjetivos que oscilam, ora com possíveis sentidos positivos, ora, negativos. Assim, compõe o tecido ambíguo do texto, instigando o leitor a desvendar o complexo enigma do “Pouso”.

referente a liberdade: aberta, aberto, livre, imprevisível,
referente ao silêncio: manso


O poema é iniciado com um adjetivo negativo relacionado ao ato do pouso.Já na primeira estrofe o pássaro é apresentado como um ser inquieto:

Difícil pra o pássaro
pousar
manso
Em nossa mão – mesmo
aberta.

Ora, se é difícil pousar manso, ou, seja, estar em estado de tranqüilidade, mesmo numa situação favorável, “em nossa mão – mesmo/ aberta”, há algo que causa angustia neste ser. Interessante é notar que o surgimento deste “pássaro” no poema, indicado pelo artigo definido “o”, causa a impressão de que ele já é conhecido do leitor. A partir daí realiza-se o ponto da intertextualidade com o outro poema “Pouso”.
Sim, o pássaro do qual se trata em “Pouso (II)” é o mesmo que aquele já visto no livro Transposição, bem como o ato de pousar traz a mesma significação.Ou seja, são poesias explicitamente intertextuais e ambas trazem como assunto e perspectiva a questão da metalinguagem. Entretanto, no segundo poema, há uma leitura menos melancólica que dá vez a um ponto de vista mais rígido, já citando o silêncio como uma proposta consciente.
Várias são as características transcritas no primeiro para o segundo poema.
Entre elas, duas são indispensáveis de comentários:

- o destaque para a liberdade do pássaro:
“Pouso”: “Ó pássaro, em minha mão/ encontram –se /tua liberdade intacta”;
“Pouso (II)”: “Difícil difícil/ Para a livre/ Vida”. (Aqui, a expressão “livre vida” refere-se ao pássaro).

- a utilização do símbolo Mão que representa a totalidade do Eu-lirico:
Pouso: “Ó pássaro, em minha mão”;
Pouso (II): “pousar/ manso /Em nossa mão – mesmo/ aberta”.

Entretanto, do primeiro para o segundo poema o pronome pessoal foi substituído de minha (mão), para nossa (mão); o que alude a um distanciamento do foco individual, convertendo-o numa voz enfática, generalizada - a medida que se compreende o “nosso” como a algo coletivo, que pertence a todos.
Retomando a questão dos adjetivos, observa-se, na terceira estrofe, a relação que eles estabelecem:

“e inda mais
difícil
- contendo o
vôo
imprevisível –“

Aqui, a dificuldade do pouso - de ter o pássaro inerte em mãos - é reiterada com “contendo o vôo o imprevisível”. Pois, para o pássaro que é livre, lhe é muito mais atraente o imprevisível, a surpresa do vôo do que a limitação que lhe é imposta quando opta pelo pouso.Pensando o pássaro como metáfora da expressividade poética, o Eu-lírico utiliza-se deste símbolo para manifestar seu ponto de vista: sobre o quanto é difícil organizar o fluxo das sensações abstratas e transcrevê-las através da lírica.
E o quão é arquitetada esta poética. Novamente, voltando-se à forma espacial do poema, percebe-se como o conteúdo é engenhosamente articulado. Se pensarmos os versos longos como o vôo, que atingem uma grande extensão; e os versos curtos como o pouso, inerte, contraído, imagina-se que o próprio pássaro se faz presente voando sobre o papel. E esta permutação, a incerteza entre pousar ou voar, é o que garante a surpresa – tanto para o pássaro quanto para o leitor. Há também o destaque dos travessões em uma determinada estrofe, que deve ser salientado, pois, integrado ao conteúdo do poema, eles reiteram a imagem da contenção, e ainda, constroem visualmente a idéia do vôo contido: como se imitassem um casulo – um local há isolamento e proteção.

“- contendo o
vôo
imprevisível –"

Não obstante, a poeta segue relendo-se num processo de continua maturação. O que outrora foi tido como meta romântica: “Ó pássaro, em minha mão/ Pousado/ será possível cantarmos/ em uníssono”, neste novo momento é visto de maneira amarga e um tanto irônica:

“mutuar o seu canto
no alvo seio
de nosso aberto
mas opaco

Silêncio”.

“Mutuar”, como consta no dicionário, é trocar entre si, permutar, dar ou tomar de empréstimo. Diferente de “cantar em uníssono” como no poema anterior, aqui, parece que não se tem mais a ambição de ser como o pássaro, de cantar como o pássaro; e sim, há uma leitura mais fria, menos utópica.
A expressão: “alvo seio”, e suas adjetivações contrapostas “aberto mas opaco”, estão relacionadas ao termo “silêncio”.Quando diz “alvo seio”, busca a imagem do íntimo, do centro; contudo este íntimo é alvo (límpido), aberto (claro, sincero, acessível, livre, receptivo e desprotegido), porém opaco (escuro, sombrio, turvo que não deixa passar luz).
Percebe-se que no poema o íntimo está relacionado ao silêncio. E para se alcançar o intimo do pássaro (o Pouso), o poeta necessita se abrir:

“Difícil pra o pássaro/ pousar/ manso/ Em nossa mão – mesmo/ aberta.” (Pouso).

“mutuar o seu canto/ no alvo seio/ de nosso aberto/ mas opaco/ Silêncio.” (Pouso II).

Conforme analisado, um objeto simbólico posto em circulação produz sentidos indefinidamente, e estes são um convite à experimentação. Orides Fontela faz uso de uma hermenêutica cíclica, ou seja, por meio de poucas palavras e símbolos, contendo-se e buscando precisamente a concisão, ela cria seu jogo de palavras com seu repertório próprio e consegue atingir um nível intenso de significação.
O fato do nosso interior (subjetivo) se abrir e continuar sendo opaco, remete ao seguinte verso de “Pouso”:

“Ó pássaro, em minha mão
encontram –se
tua liberdade intacta
minha aguda consciência”.

Retomando as questões existenciais da humanidade, “o alvo seio aberto, mas opaco” remete a racionalidade humana e à limitação da expressão.Observa-se também que o silêncio transita sutilmente pela superfície do poema e por ele é absorvido.Então, torna-se presente na composição do nível mais abstrato da leitura, o nível da significação dos sentidos figurados e metafóricos.Todavia, é necessário desvendar qual é a significação do termo silêncio e por quais motivos Orides Fontela o almeja.
De acordo com Merleau Ponty, na citação de Cleri Bucioli:

Para alcançar a palavra verdadeiramente expressiva, não se escolhe somente um signo para uma significação já definida, como, por exemplo, um martelo para cravar um prego ou alicate para o arrancar. É preciso sim, tatear em torno de uma intenção de significar, pois, se quisermos apreciar as palavras, precisamos sentir suas diferentes relações.
[16]

Segundo os estudos de Eni Puccinelli sobre “As Formas do Silêncio”, o silêncio é fundante, é matéria significante por excelência - ele significa em si mesmo.No entanto ele apenas deixa pistas, traços para ser vislumbrado de modo fugaz.Escorrendo por entre as tramas das falas - não se pode observá-lo se não for por meio de seus efeitos políticos ou retóricos.Para compreender o silêncio não se pode traduzi-lo em palavras e, sim, conhecer os processos de significação que ele põe em jogo.

A incompletude do sujeito pode ser compreendida como trabalho do silêncio.Sua relação com o silêncio é sua relação com a divisão e com o múltiplo.A incompletude é propriedade do sujeito e do sentido, e o desejo de completude é o que permite, ao mesmo tempo, o sentimento de identidade, assim como, paralelamente o efeito de literalidade (unidade) no domínio do sentido: o sujeito se lança no seu sentido (paradoxalmente universal), o que lhe dá o sentimento de que este sentido é uno. (...) A escrita permite o distanciamento da vida cotidiana, a suspensão dos acontecimentos. Ela permite que se signifique em silêncio.Assim, há auto-referência sem que haja intervenções da situação ordinária (...) O autor escreve para significar a ele mesmo. È um modo de reação ao automatismo do cotidiano.
[17]

A autora defende que o silêncio e o implícito não coincidem.A diferença, é que o silêncio consagra a possibilidade do dizer vir a ser outro.Explica que, por meio do silêncio, o sentido ecoa no sujeito. Todavia, nessa perspectiva, a polissemia torna-se função do silêncio, pois ele permite a relação do sujeito com a exterioridade, ou seja, o interdiscurso.Não obstante, esta relação gera um efeito de dispersão e instabilidade, pois possibilita ao sentido desdobrar-se de si em outros sentidos indefinidamente.Na arte, intencionalmente, o silêncio ocupa o lugar da resistência.

Percebida na relação com o silêncio, à ideologia aparece como o imaginário necessário que, pelas suas falhas, permite o deslocamento.(...). Já que o homem é um ser simbólico, a tudo ele deve atribuir um sentido. Tudo significa. Estar em silêncio é uma das formas de estar no sentido.
[18]

Na poética de Orides Fontela, o tom de resistência está na obstinação em romper as barreiras da expressão a fim de transportar o invisível para o visível. Benedito Nunes discute que a metamorfose do ser real no ser da expressão remete ao reencontro da realidade pura. Ou seja, a proposta é reinventar o mundo, redescobrir os sentidos.

Não nos contentamos em viver; precisamos saber o que somos, necessitamos compreendê-lo e dizer, mesmo em silêncio, para nós mesmos, aquilo que nos vamos tornando.
[19]

Nos estudos de Benedito Nunes acerca da obra de Clarice Lispector – também uma autora da modernidade que busca na metalinguagem investigações profundas sobre existência - compreende-se que a linguagem é como uma prisão dos sentidos:

“Presa. Onde está a imaginação? Ando sobre trilhos invisíveis. Prisão, liberdade. São essas as palavras que me ocorrem. No entanto não são as verdadeiras, únicas e insubstituíveis, sinto-o. Liberdade é pouco. O que desejo ainda não te nome”.
[20]

Priscila Paschoa toma das palavras de Rilke para sintetizar a impressão que se tem sobre a proposta literária de Orides Fontela: “Como suportar, como salvar o visível, senão fazendo dele a linguagem da ausência, do invisível?”.
Orides Fontela parece ousar renomear as coisas.Seu ”Eu –lírico” trata da palavra como em sua primeira finalidade: a de nomear. Alfredo Bosi, ao tocar nesta questão retorna à Bíblia quando no livro de Gêneses, ao primeiro homem foi dado o poder de nomear. Sobretudo, nomear, mais do que um dom é um poder:

...quer refazendo zonas sagradas que o sistema profana (o mito, o rito, o sonho, a infância); quer desfazendo o sentido do presente em nome de uma libertação futura, o ser da poesia contradiz o ser dos discursos correntes.
[21]

Bosi afirma que dos caminhos de resistência mais trilhados, a poesia-metalinguagem, é aquela que atinge maior profundidade de defesa e autocontrole.Em sua imersão subjetiva e auto-referencial ela reaviva a atmosfera mágica que a sociedade de consumo, capitalista e tecnológica renega.



Portanto, aí está a relação de Orides Fontela e sua criação poética - o seu “Pouso” – com a metalinguagem. A critica ao esfacelamento do homem contemporâneo vêm rodeada de enigmas e de silêncio. Sobretudo, uma das coisas que a poeta busca no silêncio é a chance de apagar o todo, desfazer o real e recomeçar novamente.Renomeando os objetos e oferecendo novas possibilidades de sentido para o ser – e para a poética.

Citações
[1] Friederich, Hugo. A estrutura da lírica moderna. São Paulo: Duas Cidades, 1991.(p. 193).
[2] Paschoa, Priscila. In: “o Ritmo na poesia de Orides Fontela como elemento desarranjador”.
[3] Como informa Priscila Paschoa, Natalia Correia (1996, p.54), escritora portuguesa da segunda metade do século XX, aponta que, para o poeta moderno, são as pulsações da possibilidade criada pela palavra as responsáveis por ordenar o ritmo. Antonio Candido em “o estudo analítico do poema”; ed. Humanitas, p.68 diz: “Ritmo é, pois, uma alternância de sonoridades mais fortes e mais fracas, formando uma unidade mais configurada.
[4] Bucioli, Cleri: op. cit, p. 94.
[5] Por enjaberment entendemos a partição de uma frase no final de um verso ou uma estrofe, sem respeitar as fronteiras dos sintagmas, colocando um termo do sintagma no verso anterior e o restante no verso seguinte. É o enjambement que cria um efeito de coesão entre os versos, pois aquele onde começa o enjambement não pode ser lido com a habitual pausa descendente no final, e sim com entonação ascendente, que indica continuação da frase, e com uma pausa mais curta ou sem pausa. (Revista P@rtes 2000-2006 Editor: Gilberto da Silva São Paulo - Brasil).
[6] Citação de Cleri Bucioli, op. cit. p. 82.
[7] Bosi, Alfredo: op. cit, in: “Poesia e Resistência”.
[8] Na alquimia, o pássaro encontra-se vinculado ao medo da morte, à separação da alma do corpo, sendo que existem representações medievais em que a alma deixa o corpo do morto em forma de pássaro. Nos tratados alquímicos, aparece como um guia em direção à experiência interior e os alquimistas os consideravam como formas gasosas de matéria sublimada, de forma que os espíritos, os vapores e as substâncias eram simbolizados por eles, usando representações distintas de suas espécies.Na mitologia germânica, os pássaros pertencem a Wotan e na mitologia greco-romana a Apolo sendo que uma de suas características seria a capacidade de profetizar. Possui ainda o simbolismo de que seja um anjo. Nos contos de fadas, aqueles que compreendem a linguagem dos pássaros são capazes de adquirir um conhecimento especial. Eles são o pensamento e a imaginação, transcendência e a divindade, como libertação do materialismo. Um bando de pássaros pode ser negativo. (www.salves.com.br).
[9] Bucioli, Cleri: op. cit. p.22.
[10] Friederich, Hugo: op. cit. p 151.
[11] Bucioli, Cleri.: op. cit. p. 63.
[12] Bucioli, Cleri. Op.cit., p 117.
[13] Pucinelli, Eni. Op. cit.
[14] Paschoa, Priscila. op. cit. p. 11.
[15] Nunes, Benedito: op. cit.
[16]Bucioli, Cleri: op. cit., p. 100.
[17] Pucinelli, Eni: op.. cit., p. 54.
[18] Pucinelli, Eni: op. cit., p. 179.
[19] Nunes, Benedito: op.cit.
[20]Lispector, Clarisse. Perto do Coração Selvagem, p. 61. Trecho encontrado no livro de Benedito Nunes, op. cit.
[21] Bossi, Alfredo. Op. cit., p. 146.