Estou publicando aqui um artigo do Hans Magnus Enzemberg - ele é nosso amigo, só não sabe disso ainda!

Posted: terça-feira, 12 de maio de 2009 by O Blog dos Poetas Vivos in Marcadores:
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A Irresistibilidade da Pequena Burguesia. Um Capricho Sociológico

Hans Magnus Enzensberger
[Este artigo de Enzensberger, datado de 1976, foi publicado no Brasil em 1985. Corresponde a um período em que, apesar da crise estrutural já ter sucedido o ciclo expansivo do pós-guerra, os efeitos da decadência da economia de mercado nos "países centrais" ainda podiam ser repassados para a "periferia" via juros da dívida e, no caso da época da publicação do Brasil, a crise profunda da década perdida podia ainda ser "driblada" pela classe média através das seguras cadernetas de poupança, dos salários elevados dos profissionais especializados nas multinacionais e dos privilégios do funcionalismo público. Uma visão sobre essa mesma classe, abordando a sua relação com a crise, da qual não pode mais escapar, pode ser vista em A Intelligentsia depois da luta de classes e Os bobos da corte do capitalismo, ambos artigos de Robert Kurz]

O fato de que você, que está lendo isso, o leia, é quase uma prova: prova de que você a ela pertence. Perdoe, distinta leitora, fiel leitor, por essa abordagem tão direta (talvez seja exagero dizer "prova"). "No que se segue", admito que pretendo fazer mais afirmações do que provas, por exemplo essa: que existe algo como uma pequena burguesia. Sem pestanejar. Afinal pequena burguesia é uma palavra como qualquer outra, embora soe antiquada (assim como distinta leitora), e o fato de em geral ser pronunciada em tom irritado, praticamente cuspida, não é culpa minha. Sempre foi assim, desde que Ludwig Börne, um pequeno-burguês, a introduziu no vocabulário dos alemães, por volta de 1830.
Sem escrúpulos, isto é, sem ter folheado a "literatura", isto é, algumas dezenas de milhares de páginas sobre o conceito de classe em M., E. e X., ainda sustento que a classe aqui mencionada só pode ser determinada pela sua negação, como sendo aquela que nem é uma coisa nem outra.
Não por curiosidade, apenas na esperança de me fazer compreender, permito-me algumas perguntas.
— Você vive, ou poderia viver, da renda do capital que aplicou em meios de produção?
— Não? Veja, eu já suspeitava disso.
— Mas isso quer dizer que você vive unicamente da venda da sua força de trabalho por hora a um capitalista, que se apossa da mais-valia do seu trabalho?
— É? Tem certeza?
— Então, nada de bolsas? nem juros? nem honorários? nem subsídios? ganhos extras? diárias? Participação nos lucros? Aluguéis? Prêmios? Comissões?
— Nenhum capital intelectual acumulado? Nem ajuda de custo para troca de moradia? Nenhum escritório? Nem moradia própria? Nem verba de representação? Nenhum meio de produção próprio, sequer uma pequena biblioteca de consulta? Em suma, nenhum ganho desviado da mais-valia criada pelo trabalho de outros?
Peço mais uma vez desculpas por essas indagações pedantes e inoportunas.
Possivelmente não é a coisa em si que o incomoda, mas apenas a palavra. Soa tão miserável: pequena burguesia. Mas você certamente não é o único a ficar encabulado. Por isso mesmo, aqueles de quem estou falando tiveram uma porção de idéias sobre nomes para aquilo de que falo (e no que me incluo). Por favor escolha e marque com uma cruzinha o que lhe agradar:
Classe média (velha, nova, alta, baixa, média, "elevada");
Empresariado (pequeno), artesanato, "classe" média;
"Camada" de empregados (média, alta etc.);
"Funcionalismo", "setor terciário", burocracia;
Gerentes, "especialistas", tecnocratas, inteligência técnica;
"Autônomos", profissionais liberais;
"Universitários", intelligentsia ("independente", científica etc.).
Está vendo, portanto, ninguém quer se aproximar demais de você. Apenas lhe convido a situar-se de alguma forma e solicito-lhe a permissão para usar a 1ª pessoa do plural, a fim de simplificar as coisas. Muito obrigado.
Portanto, pertencemos a uma classe que nem domina nem possui aquilo que interessa: os famosos meios de produção; e que não produz aquilo que também interessa, a famosa mais-valia (ou só a produz indireta e secundariamente, um ponto muito debatido nos seminários; mas não é de modo algum tão delicado quanto nos querem fazer crer). Exatamente dessa maneira inexata são os fatos. A pequena burguesia não pertence aos dois principais protagonistas da (famosa) contradição principal, não é nem a classe dominante nem a classe sugada, mas a classe do meio, a classe que sobra, o resto vacilante.
Um resto penoso de suportar para os amantes das imagens limpas, simpáticas, nítidas. A classe que vacila é sempre a que incomoda. Sua existência provoca constante confusão entre teoria e práxis. Para eliminar esse escândalo do mundo (e por uma série de outros motivos que talvez ainda abordemos), nos últimos anos não faltaram tentativas de liquidar a pequena burguesia. Até certo ponto, diziam, podia-se deixar essa tarefa às sólidas regularidades da história. Diziam que, por si (ainda dizem isso em alguns lugares), a parte menor de nossa classe passaria para o lado dos graúdos, ascendendo à alta burguesia, conseqüentemente morrendo com ela, que já está condenada à morte; a outra parcela, bem maior, ficaria ao lado dos cordeiros e lá colheria os frutos do socialismo: os justos haveriam de proletarizar-se devido às (famosas) leis de movimento do capital, embora nem sempre voluntariamente. O resto insignificante de iníquos deveria ser, então, simplesmente eliminado.
Nossos antepassados, se pertenceram à classe aqui descrita, entenderam a mensagem e acreditaram sinceramente na profecia, com temor e tremores.
Mas ela não se realizou. Seja o que for que aconteceu com os pequeno-burgueses, seu apocalipse não se deu. Nem a concentração progressiva do capital, nem a inflação secular, nem o progresso técnico-científico, nem guerras, nem crises acabaram com ela. Nem mesmo a introdução de uma espécie de socialismo pôde eliminar a classe vacilante na União Soviética, na Europa Oriental, nos países do Terceiro Mundo. Ao contrário, produziu-se um novo tipo de pequeno-burgueses, os das revoluções vitoriosas, os bonzos, os quadros, os funcionários públicos: singulares mutantes, inauditas expressões de uma "nova classe" que se parece muito com a antiga.
Mas também nas sociedades capitalistas os antigos bons e maus petít-bourgeois não ficaram inalterados. As figuras Biedermeier do pequeno artesão, do dono da lojinha, do burguês culto e dos cidadãos honrados não desempenham mais um papel central, como outrora (uma olhada nos parlamentos alemães mostra porém que o tipo não morreu). Mas parece que a "classe média" compensou seus sacrifícios, ampliando-se ainda mais quantitativamente, firme e despercebidamente como capim. Em cada mudança estrutural da sociedade ela lançou, por assim dizer, novas raízes. A cientifização da produção, o crescimento dos setores terciário e quaternário da economia, o aumento de gerências privadas e públicas, a extensão da indústria da consciência, as instituições pedagógicas e médicas: a pequena burguesia esteve presente em tudo isso. Também depois de cada mudança política ela instalou-se imediatamente nos novos aparatos estatais e partidários, e não apenas defendeu mas alargou a sua "posição" social.
Uma teoria capaz de fundamentar a força de sobrevivência, a capacidade de resistência e o sucesso histórico dessa classe parece não existir na atualidade. Já o fato de que a pequena burguesia é tão grosseira e obstinadamente menosprezada, há pelo menos 150 anos, merece explicação. Ninguém colaborou mais para essa subvalorização do que a própria pequena burguesia. Tal fato certamente se relaciona com sua peculiar consciência de classe. Ela foi frágil desde o começo e, hoje, só se pode descrever como pura carência. Pois assim como a classe só se determina analiticamente de forma ex-negativa, também deste modo se entende a si mesma. O pequeno-burguês quer tudo, menos ser pequeno-burguês. Tenta obter sua identidade, não se reconhecendo membro de sua classe, mas negando-a. Válido deve ser só aquilo que o distingue: o pequeno-burguês é sempre o outro. Esse estranho ódio de si mesmo funciona como um disfarce. Com sua ajuda, a classe tornou-se quase invisível. Ação solidária e coletiva não entra em questão para ela; jamais terá a autoconsciência de uma classe. Esse mecanismo de rejeição leva subjetivamente a fazer com que ela não seja respeitada socialmente; objetivamente, impede a formação de organizações de classe univocamente determinadas, politicamente abrangentes. O quadro social da pequena burguesia tende ao mimetismo, quanto mais aumenta, mais inconfundível ela se torna.
Provavelmente nunca houve antes uma classe tão dividida, tão desintegrada. O extremo fracionamento objetivo e subjetivo da pequena burguesia não é um enigma. Nasce da sua situação econômica e de sua história. Sua relação com os meios de produção passa por inúmeras mediações e derivações. Daí se segue, de um lado, a sua incapacidade política em tomar o poder. Essa classe não quer e não pode dominar, e interioriza essa impotência de forma muito particular. O pequeno-burguês recusa o poder e adora-o, mas isso significa que o delega e só o percebe enquanto poder delegado, à medida que o administra, justifica e o põe em dúvida. Mas quanto menor se torna a classe dominante propriamente, tanto mais ela precisa da pequena burguesia, para generalizar e transmitir o seu poder. De outra forma, há muito que a classe trabalhadora não poderia mais ser mantida desarmada e controlada. Assim também a influência política da pequena burguesia se pode determinar ex-negativo, como uma espécie de inarticulado poder de veto. Por isso explica-se o interesse da pequena burguesia no aspecto formal da política, nos procedimentos, prescrições, regras legais e formas de relacionamento.
A incapacidade de unificação e de aliança tem porém seu lado reverso. A multiplicidade e a sua articulação extremamente graduada segundo o status, grupos profissionais e propriedade, fundamenta também a resistência, a dinâmica e a agressividade da classe. Ela é uma vantagem na evolução social, um fator de auto-subsistência. Em sistemas biológicos vale a frase: uma espécie é tanto mais difícil de exterminar quanto maior sua variabilidade, seu pool genético. Uma regra análoga vale na sociedade. Um monolito social sobrevive mais dificilmente às mudanças de condições históricas, do que um conjunto de articulações variadas. A capacidade de adaptação, ideologicamente pouco valorizada e tachada de mau-caratismo e oportunismo, acusada exatamente pelos pequeno-burgueses, aumenta sem dúvida as chances de sobrevivência de uma classe. Ninguém a tem em maior grau do que o petit-bourgeois. Nenhum nicho social é tão pequeno, tão afastado, tão isolado, tão exposto, que ele não o tente ocupar. Nunca fixar-se definitivamente e agarrar qualquer possibilidade: é a única coisa que a classe aprendeu de sua história tão cheia de mudanças. Há muito se despediu de seu antigo caráter social, do hábito pacato, filisteu e tacanho dos primeiros tempos. Ainda não se sabe até que ponto essa predileção pela perseverança arrogante é herança histórica; também a antiga pequena burguesia do século XIX era uma classe nervosa, irritadiça, facilmente indignada e rebelde, com uma tendência esporádica para o radicalismo, à súbita excitação, crítica por ressentimento e corajosa por medo. Foram pequeno-burgueses que criaram a figura do burguês tacanho; foi de burgueses que se compôs a boemia, cuja especialidade era chocar outros pequeno-burgueses.
Hoje em dia a classe está cheia de homens progressistas, ninguém mais ávido do que eles para seguirem as mais novas tendências. Essa classe está sempre na última moda. Ninguém é capaz de mudar mais depressa suas ideologias, roupas, formas de convívio social e hábitos, do que o pequeno-burguês. Ele é um novo Proteu, cuja capacidade de aprender vai até a perda de identidade própria. Sempre fugindo do que envelheceu, ele corre atrás de si mesmo.
Derrotas políticas podem abalar a classe trabalhadora na sua consciência de classe; mas é impossível roubar-lhe a tranqüila convicção da necessidade de sua existência. Também a alta burguesia se julga indispensável. A pequena burguesia, ao contrário, tem de lutar constantemente contra a sensação de ser supérflua. O cinismo é privilégio dos dominantes. Mas a classe rejeitada, pelo contrário, busca justificativas; está permanentemente à procura de sentido. É tão engenhosa quanto inescrupulosa, mas sempre necessitada de moral. Produziu obras-primas solitárias em matéria de racionalização e dúvida. Mas sua autocrítica e a sua autonegação são de dimensões limitadas. Uma classe não pode eliminar a si mesma. Por conseguinte, dúvida e derrocada servem em última análise de estímulo e prazer para a pequena burguesia. Torná-la insegura é fácil. Dissuadi-la de si mesma é impossível. A pequena burguesia questiona-se incessantemente, é a classe experimental por excelência. Mas o processo de auto-estímulo serve apenas para manutenção e ampliação de sua própria esfera. Sua insegurança tem método; é usada para uma estratégia que não desiste da quimera da segurança.
Como se explica a posição central que a pequena burguesia mantém em todas as sociedades altamente industrializadas da atualidade? Nossa classe não dispõe de capital, nem tem acesso direto aos meios de produção; está mais distante que nunca do poder econômico e político. Não saberá ela mesma em que reside sua força? Ou será medrosa demais para soltar esse gato do saco? Chegamos perto da resposta, simples e lapidar: a pequena burguesia dispõe hoje em dia de hegemonia cultural em todas as sociedades altamente industrializadas. Tornou-se a classe modelar, a única que produz em massa as formas de vida cotidianas e as torna obrigatórias para as demais classes. Ela promove a inovação. Decide o que é belo e desejável. Determina o que será pensado (os pensamentos dominantes já não são os da classe dominante, mas os da pequena burguesia). Ela inventa ideologias, ciências, tecnologias. Dita o que significa a moral e a psicologia. Decide sobre o que deve "acontecer" na chamada vida privada. É a única classe que produz arte e moda, filosofia e arquitetura, crítica e design.
Toda a esfera do consumo de massa é decididamente marcada pelas idéias da pequena burguesia. Artigos de mercado e propaganda são projeções de sua consciência. No consumo repetem-se em forma generalizada todos os traços do caráter social pequeno-burguês: dinamismo e individualismo, progresso como fuga para a frente, formalismo e inovação permanente, esbanjamento e necessidade de continência. Basta apontar para a forma dos dois bens de consumo simbólicos da nossa civilização: aparelho de televisão e automóvel particular. Só o pequeno-burguêss poderia inventar esses singulares objetos.
Igualmente impressionantes são suas façanhas no campo da produção imaterial. Os aparatos da superestrutura são todos ocupados por membros de nossa classe, assim como todas as "correntes", "orientações" e "movimentos", que têm algum papel nas sociedades altamente industrializadas, são inspirados, carregados e impostos pela pequena burguesia: do turismo ao do it your seif, da Vanguarda artística ao urbanismo, do movimento estudantil à ecologia, da cibernética ao movimento feminista, do esporte à "liberação sexual" e assim por diante, o tempo inteiro. Cada movimento alternativo dentro de nossa cultura foi imediatamente tomado pela pequena burguesia — basta pensar no exemplo da música rock que originariamente foi uma expressão de jovens proletários, assim como cinqüenta anos antes fora o jazz. Até ideologias originalmente bem subversivas, como o anarquismo e o marxismo, hoje em boa parte são apropriadas pela pequena burguesia.
Só uma pormenorizada análise materialista poderia explicar como a "classe experimental" chegou à sua hegemonia cultural. Um alto grau de industrialização certamente é necessário, embora não seja uma condição suficiente. O modelo da cultura pequeno-burguesa pressupõe certa riqueza social. Só quando a produção é altamente organizada, as esferas sociais da distribuição, da circulação e da administração podem se estender, formando uma larga "classe média". Inversamente, é a crescente centralização e concentração de capital que faz com que a classe dominante se reduza, tendo de sacrificar a sua hegemonia cultural.
A produtividade frenética da pequena burguesia, sua capacidade de inovação, porém, deveria ser explicada simplesmente pelo fato de que não lhe resta outra coisa. Ela é "inteligente", "talentosa", "inventiva", porque disso depende sua sobrevivência. Os donos do poder não precisam disso; mandam outros inventar, compram inteligência e "atraem" talentos. O proletariado, ao contrário, priva-se sistematicamente de toda a produtividade autônoma. "Vocês não têm nada que pensar!" berrava já F. W. Taylor, pequeno-burguês e pai da racionalização, referindo-se aos operários de produção, e naturalmente não foi só no Ocidente. Assim, ex-negativo, é que se explica o fabuloso talento da pequena burguesia, como a maior parte das suas outras qualidades.
Muito diversa é a questão do que torna a cultura hegemônica da pequena burguesia tão irresistível. Como ela pôde tornar-se modelo universal, seguido por bilhões de pessoas? O que o torna extraordinário? Devido a que qualidade ela elabora praticamente todos os projetos alternativos, tanto nacional como mundialmente?
É uma verdade evidente que o proletariado europeu está marcado, em suas formas de vida e aspirações, pela cultura pequeno-burguesa. Mas também a antiga forma de vida da alta burguesia foi totalmente liquidada por ela; seu luxo encolheu para o formato das revistas ilustradas; seu padrão "exclusivo" é apenas aquele dos pequeno-burgueses que se permitem usar uma marca cara. Inversamente, é apenas questão de tempo que a escova de dentes elétrica entre triunfalmente nos cortiços. Já não existe hoje mais qualquer bazar oriental ou mercado malaio, ou caribense, onde os fósseis básicos da cultura pequeno-burguesa não tenham conquistado, há muito, seu lugar. Os fundamentos econômicos dessa invasão total e geral são conhecidos e não foram criados pela pequena burguesia. Contudo, o que qualquer consideração puramente econômica exclui é a dimensão cultural desse processo (Pier Paolo Pasolini o descreveu exemplarmente para a Itália).
Portanto, fica a indagação: o que é tão singular, tão sedutor no isqueiro de mesa, no gosto de Pepsodent, na poesia concreta. na sala para cultivar um hobby, no programa "Vila Sésamo", no limão de plástico, na pesquisa de comportamento, em Emma e Emmanuelle, no desodorante, no Sensitivity Training, na câmera Polaroid, na mercadoria exposta, na parapsicologia, no Peanuts e na liga metálica, na camiseta, na Science Fiction, no seqüestro de aviões e no relógio digital, que ninguém, nenhuma nação, nenhuma classe social, de Kamtschatka à Terra do Fogo, lhes seja imune? Não terá realmente aparecido nenhuma resistência contra o que nossa classe inventa? Ninguém escapará, nem mesmo os congoleses, de se munirem de cuecas desenhadas por um modista francês? Também os vietnamitas terão de engolir Valium? Nenhum caminho passará longe da terapia de comportamento e do Concorde, de Masters & Johnson, da cidade-satélite e da pesquisa de currículos? E o estofado em material semelhante ao couro, que respira, que é resistente à sujeira, com almofadas de assento e encosto soltas, de espuma de borracha, presas com botões, molejo de espuma de borracha amortizado com algodão, com fivelas ornamentais, divisões inferiores em tiras de couro, transportável e giratório, sobre rodinhas de cromo, essa peça maravilhosamente linda que me persegue implacavelmente, que está à minha espreita por toda parte como o ouriço do conto de fadas, que está sempre ali, nas festas de aniversário, na televisão, no quarto-e-sala de um operário turco em Berlim-Schöneberg, no Spiegel, no dentista, nas férias aventurescas, nos órgãos do Partido, na liquidação, no belo Danúbio azul, na Casa Branca e no depósito de lixo — será que nada adianta, será que ela continuará irresistivelmente seu trajeto, essa encarnação de todos os sonhos floridos de nossa classe, até chegar aos souks de Damasco e ao aeroporto de Xangai?
Provavelmente já está lá há muito tempo.

Artigo publicado em Com raiva e paciência: ensaios sobre literatura, política e colonialismo. São Paulo: Paz e Terra, 1985, p. 87-95.

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