Verniz

Posted: domingo, 18 de janeiro de 2009 by O Blog dos Poetas Vivos in Marcadores:
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Minha insana vaidade cheirava a verniz.
Quis fechar meus olhos, então, ver se a dor seria menor.
Fazia noite vazia. Eu estava só olhando a mim mesmo. Mas transgredi toda prisão ao perceber em volta tantas pessoas também solitárias observando qualquer lugar no tempo.Estava frio.A cena iluminada por velas tristes que cuspiam cera quente, o quente que arde, mas, inútil para aquecer.
A frente um caixão. O caixão de madeira envernizada luzente, matéria muito viva. Luzente com corpo morto em si.
Todos calados choravam, mas não juntos, cada qual com seu motivo particular. No externo constituíam-se como coro uníssono, mas no íntimo são instrumentos com timbres extremamente singulares. Pareciam não estremecer ao compor o canto mudo; e os óculos pretos combinando com a cor do traje de luto causavam cegueira endêmica. Até perfeitos e elegantes: traje de luto, óculos e choro contido. No entanto, aquele que prestasse, qualquer pouca atenção, perguntar-se-ia pra que tanta elegância. Todos afinados com minuciosa técnica, não havia quem fosse capaz de tentar soluço menos grave ou gemido mais agudo.
Observei aflito o brilho do caixão.
Não houve desespero descabelado, alguém disposto a ir junto. Na hora do enterro, não imaginava como seria, quem faria força suada e mal cheirosa para sepultar o que já está inerte?
Fiquei ali parado embora quisesse encontrar o maestro da orquestra, temia tropeçar entre os cegos. Aposto que acabariam, cada qual numa estação da vida, a pedir esmolas.
O caixão no centro, a morte ali, destaque.
A vaidade era o verniz.
Começava a entender todos os significados, os desejos, o último abraço, o adeus; e também os códigos de recomeço, descanso, descaso ou o encontro com Deus. Mas, respondam, por favor, quem morre a morte oposta?
Silenciosamente cada qual fazia seu próprio velório. Individualmente cada ser, seu próprio centro. Em todo este, não sabia onde estava minha posição – mas iria descobri-la ao enxergar para além da sombra angular de meu nariz.
Pois eis que tive pressentimento laico, sentia-me mais do que mero instrumento de velório... porque quebrei a solidão olhando em volta... agora sei exatamente: sou o caixão!
Sim, vivo - luzente por fora, e dentro, quanta matéria morta. Ficava ali como a noite fria e a vela chorosa - queima a pele com sua lágrima, tem luz tão fraca, irritante, que mais faz sombra do que ilumina. E as flores? Aquelas belas flores estranhas sem cheiro, enfeitavam a ausência da vida. Belas, enfim, em vão.
Morro hoje com saldo incalculável das vezes que fui enfeite no velório alheio. E quais serão os próximos a se enterrarem em si próprios agonizando o corpo com a matança da alma? Serás tu, ou quiçá teu vizinho? Basta abrir a porta de casa, há senil massa eufórica de velórios indo aos bancos, pegando ônibus, fazendo compras, entre tantas outras coisas andam deprimidos, pesados.
Quis fechar meus olhos, ver se a dor seria menor, mas doeu muito quando olhei para mim. Então, os abri seguindo a luz e quando tornei a realidade percebi que estava absurdamente –só- olhando para o espelho. Minha pele velava minha carne na mais vaidosa solidão. E num reflexo de vidro, assisti meu próprio velório. O que mais pesa é carregarmos sem ajuda de outros o nosso próprio caixão lustroso.

E a vaidade é o verniz.


Roberta Villa

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