O olho que saí

Posted: domingo, 18 de janeiro de 2009 by O Blog dos Poetas Vivos in Marcadores:
0


Aí, aí, aí, o ônibus pulava muito e em seu interior tudo permanecia sem inércia, porém, na mais profunda alienação. Pro alto e pra baixo, pro alto e pra baixo as pessoas, as idéias e os objetos. Paro alto e pra baixo as coisas se juntavam sem fazer conexão.

É, num repente surge no coletivo um sujeito-indivíduo desequilibrando a minha viagem plena. Era um garoto como tantos outros demais, que sobem e pedem ajuda e agradecem a Deus e descem e esperam... assim prosseguem a solitária romaria. Mas aquele era diferente. Trazia consigo os drops de sempre e um olho arregalado, sonso e inerte. (Apenas um dos olhos arregalado e sonso e inerte! Devia ser drogado, sim, sem dúvida. Mas por qual razão o ópio lhe afetaria apenas uma parte do corpo?... E no futuro, o que será do outro lado?!).

Aí, aí, aí, enquanto eu pensava subitamente o ônibus passou por uma curva fechada; assim todos os passageiros mantiveram os olhos abertos. Sorte teve o menino para diária petição - pois estava ao centro das atenções - não havia quem deixasse de observá-lo reparando seu olho estranho. Enfim, segue em anexo a ladainha tão clichê usada pelos vendedores de chiclé e afins:


É, “Senhores passageiros, desculpe atrapalhar a viagem de todos vocês...” (e todos os vocês arregalaram os olhos pra o garoto-indivíduo-senhor-dos-passageiros, como se ouvissem algo de novo. A atenção humana é aflorada por sensações sarcásticas, ou sou eu que me excedo?). “É porque preciso ajudar meus pais...!” (e todos permaneciam inertes como a vista sonsa). “O meu olho, como vocês podem ver, tem deficiência” (o evidente assusta tanto que ninguém se deu conta da nossa deficiência unânime, estatual e onipresente). “Por isso, este olho que vocês estão vendo é uma prótese e eu tenho que comprar outra nova a cada ano, mas é muito caro...”.

Aí, aí, aí, enquanto pulavam as idéias pro alto e pra baixo, a verdade desconexa foi esfregada em minha retina sem que eu pudesse desmenti-la. Não, não havia como! Asfixiando-me, a axioma sonsa e inerte é confirmada, fixada à rotina. Eu também preciso de uma nova todo ano, todo dia, a cada hora... eu também preciso e sei que é muito caro. E se não conseguíssemos, ficaríamos cegos? Mas valeria a pena tanto sacrifício, humilhar-se expondo as mais íntimas carências?”.

É, tive pena do meu irmão-garoto-indivíduo. O ônibus pulava batendo meu corpo contra o assento, desacelerando o ritmo do pensamento torto. Enquanto isso, todos os olhos passageiros grudaram-se na imperfeição daquele sujeito e ele, como se devesse algo, teve uma atitude decidida na pressa do agora: no presságio dum segundo arrancou seu olho arregalado nos expondo ao cerne buraco que havia no local do órgão da visão. Imenso fez-se o silêncio. Todos se voltaram para outros objetos, pessoas e idéias, porém, eu fiz questão de adentrar àquele túnel no corpo-carne do homem-garoto-indivíduo. Tentei em vão enxergar sua alma e meu olhar, sem me pedir permissão, tornou-se embaçado. O mundo a minha volta transformou-se num grande vulto !

Aí, aí, aí... (Neste parágrafo peço licença para registrar o protesto que veio a mim em forma de pensamento transcendente). Seria de extrema pieguice dizer-vos “uma lagrima caiu”. Ainda mais porque elas jamais caem – em verdade vos digo que estas emanam das minas dos olhos, rolam pela face e, a vós retornam pela epiderme absorvidas. Em vós, no interior ficam guardadas, com calma rancorosa concretizam o ciclo d´água. Quando menos se espera as esquizofrênicas revoltam-se e saltam de dentro d´alma, exigindo serem absolvidas. Pobres! Boa parte são prisioneiras da mágoa e por ela são consumidas; como vossos corpos um dia moribundos por vermes serão corrompidos.A magoa é a vossa moedora de cana – esmaga a doçura das lembranças rijas, liquidando-as num caldo de gosto esquisito.

É, o ônibus pulava, os objetos, as pessoas, as idéias. Pro alto e pra baixo a agonia do olho e as ires deslocadas, as pessoas fingindo não verem nada. “Aqui é para mostrar pra vocês que eu estou falando a verdade.” Mas alguém quer saber da óbvia verdade absurda? Eu tive medo, muito medo, enquanto tudo pulava tive mau agouro: vi o olho lançar-se ao chão junto com os drops-chicletes, e desta forma para sempre ficaria colado na carcaça do veículo; os passageiros, todavia desatentos, apressados, pisoteariam. Ele, ali se manteria viajando sem inércia, porém, na mais profunda alienação.

Aí, aí, aí... o discurso finalizou-se com indiferença dos ouvintes, enjoados pela desarmonia provocada naquele percurso. O deficiente colocou o olho que saí no devido lugar e todos respiraram aliviados. O meu decurso começava, eu não sabia em qual ponto descer. Vou desembarcar no ponto seguinte ao do olho que saí... e se ele for até o final?! Juro que mesmo lá me manterei estático, ainda que for necessário pagar nova passagem e regressar ao momento inicial. Só vou descer após o desfecho do indevido- garoto-olho-que-saí.

É impressionante a mobilidade do olhar humano, arregalando-se num instante e desprendendo-se quando não quer enxergar. Pois é, ao menos eu devia ter comprado um chiclé – tão barato…



Aí, aí, aí... meus caros, todos nós temos o olho que sai.




Roberta Villa

0 comentários:

expresse algo!