José Antonio dos Santos

Posted: domingo, 18 de janeiro de 2009 by O Blog dos Poetas Vivos in Marcadores:
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Não usarei metáforas ou hipérboles, nem tão pouco eufemismos – há sim o tempo certo para ironias e poesias, mas, naquele instante senti-me muda e fria. O que narrarei em breve, posso lhes assegurar, por todas as desventuras deste nosso mundo de hoje, não é isto ficção. Pelo contrario, é uma descrição exata, como foto, de um fato refletido em minha íris e refutado em minha alma.Eu apenas queria fazer um conto sobre a vaidade, sim, quando chegasse em casa seria a primeira coisa a fazer.Como começar ? ... a vaidade, vaidade... pelo caminho certamente haveria de surgir à idéia!
Moro em um bairro periférico rodeado por casas sem reboque, crianças sem chinelos, mães sem pais ....enfim ...cercado pela carência de um detalhe que faz diferença, talvez,um olhar atencioso.Fazendo fronteira com o meu, há uma imensa ocupação de terra com casas de papel e pessoas de ferro, lá se chama Anita Garibaldi e todas suas ruas foram batizadas em homenagem á pessoas bravas : Zumbi dos Palmares, Antonio Conselheiro, Chico Mendes, Carlos Mariguela – acho bonito os nomes que escolheram.Um dia, ainda verei um logradouro com o meu nome ... talvez uma praça, melhor ainda, um viaduto. Bem, mas isso pouco importa agora, o que eu precisava era ter a idéia ... para fazer um conto sobre a vaidade.

Ao atravessar o beco, só faltará uma rua e uma pequena viela para chegar em minha casa, até então, não tive idéias quaisquer. Onde piso, tem oficialmente um nome registrado na prefeitura “Viela Beira Rio”, mas em verdade é apenas um atalho: sai do asfalto e entra no meio de duas casas de bloco, ando um pouquinho e já sinto um mau cheiro de esgoto; (...uma idéia sobre a vaidade ?).
Quando chove, mais forte torna-se o odor ao mistura-se com os cachorros e barracos molhados; (uma idéia sobre a vaidade...). De madeirite e improvisos são feitas as moradas ali abaixo. Eu viro para a esquerda - seria irracional escolher outro sentido - e estradinha segue estreitinha, entre uma parede de tábua e o fronteiriço córrego; (a vaidade ...vaidade ? !). Passo pelos garotos, sempre ficam ali à margem, pontuando o fim do caminho. Agora só faltará uma rua ...
Cada vez mais, aproximo-me de minha casa ...
Não sei como começar? Movo-me bem lentamente, talvez ainda dê tempo de pensar em algo; (eu preciso fazer um conto sobre a vaidade!). Silenciosa, cumprimento as pessoas com olhares, sorrisos (estou pensando!).Alguém me pergunta :
- Cê tem camisinha na bolsa ?
- Ih, não tem não, acabou !
- Ah ! Você nunca tem, cê sempre dá pros outros e esquece de mim ...
Trabalho como “agente comunitária de saúde”, e nesta hora, estava uniformizada, fazendo o percurso rotineiro, finalizando mais um dia de labor..
- Ah, você viu que mudou uma família nova pra esta rua? A moça tá pedindo pra cê í lá cadastrá eles ...
- Onde eles tão morando ?
- Naquela casa azul, abandonada.Eles invadiram ...
- Tá bom, to indo lá agora (e quando chegar em casa a primeira coisa que farei: o meu conto sobre a vaidade!).
Esta tal casa azul, há muito me causava curiosidade. É uma casa construída de comprido em um meio terreno. Apesar do muro, dava para enxergar que tinha quatro cômodos (espaçosa e de certa maneira confortável em relação a demais), havia os buracos para futuras instalações de janelas e portas, e estava rebocada e pintada à cal....mas, abandonada !? Realmente me chamou atenção o fato dela estar vazia há anos e bem ali – onde muitas famílias moravam em cima do esgoto, em corredores apertados, com chão de terra, parede de papelão, telhas quebradas ...e a construção azul, quase perfeita, até então vazia ? !
Aproximei-me.
- Oi, tudo bom, eu trabalho no posto de saúde, chama a sua mãe pra falar comigo !? (Às vezes eu pergunto até constrangida se está tudo bem ... em certas ocasiões é claramente impossível. Algumas pessoas se calam, apenas acenam com a cabeça , talvez não estejam respondendo minha ridícula saudação).
Aguardava a mãe, enquanto pude observar em volta um garotinho sem chinelo e nutrientes, a pisar numa imunda poça d`água com cara de fossa e um leve toque cítrico de limo marrom esverdeado.Nem deu tempo de ficar com nojo, a mãe chegou rapidamente e tomou-me a atenção. Era uma senhora de um meio século, parda, suada e gorda .
- Oi – ela me cumprimentou sem olhar nos olhos, mas ao abrir sua boca, esboçando um opaco sorriso, pude notar que os poucos dentes que tinha, estavam estragados ... aquilo devia doer! È sabido pela experiência popular, dor de dente é das piores que no mundo há... mas, existe a hora qual toda dor torna-se cruel e mui intensa então, nós deixamos de senti-la.Talvez, isso por sorte, ou quiçá a falta dela!? A Dona parecia não sentir.
- Oi, meu nome é Maria Marta, eu trabalho no posto de saúde e vim aqui para fazer o cadastro da sua família; eu vou precisar do nome e da data de nascimento de vocês. Então ela me disse seu nome, e fez um grande esforço para lembrar sua data de nascimento... não sabia ao certo quantos anos tinha, quantos filhos teve e quantos anos os pobres teriam. Mas a sua filha respondeu, e a partir daí, a conversa tomou rumo.
- A minha mãe tem trinta e dois anos. E eu tenho mais dois irmão, este aqui, e minha irmã de oito anos que está lá dentro.
Achei aquela menina perspicaz o suficiente para sobressair-se a miséria, a menina tinha um brilho nos olhos e uma firmeza decidida no tom de voz, digna dos grandes heróis anônimos da história.
- Qual seu nome ?
- Meu nome é Gisele e eu tenho treze anos.
-Gisele, que nome bonito! - ela sorriu, feliz por ter um nome bonito – Gisele é o nome da minha melhor amiga sabia ?
- É ? Eu acho o seu nome mais bonito do que o meu – eu sorri por ter um nome bonito - sabia que o nome da minha melhor amiga também é Maria Marta?
E naquele instante, por uma coincidência, nos tornamos melhores amigas. E nenhuma outra Gisele no mundo, pôde ser tão bela como ela, sem luz, sem água, sem jeito.Provavelmente, por todas as circunstâncias, ela não podia tomar banho, todos os dias, nem escovar os dentes após as refeições ...mas aí é um fato ameno, diante da situação de nem ter ao certo o que comer.Mas ela não me parecia fraca e faminta, achei-a ,sim, completamente limpa! Muito mais que fashion, ela era foda ao sorrir usando uma blusa de linho e manga comprida num dia de sol feroz. Foi tão só que descobri uma nova moda pop e descolada,há muito intitulada : sobrevivência.
O homem sujo ocupado com um cavalo, cara de doente, e sua carroça
cheia de matérias recicláveis e com um pouco de capim, estava se preparando para trabalhar e apressou Gisele, que o ajudava, enquanto conversávamos.Aquele era seu pai.
- Então, só falta você me falar o nome e a data de nascimento do seu pai.
- O nome dele é José Antonio dos Santos.
- José Antonio dos Santos! Sério? É o nome da minha rua! Que legal, o seu pai tem nome de rua .
Ele, apesar de indiferente, ouvia toda nossa conversa, e neste momento, prestou especial atenção, eu lhe disse:
- Eu sempre quis saber quem era esse José Antonio dos Santos, e hoje descobri que é o senhor.
- Prazer – ele me respondeu num misto de satisfação e surpresa – eu não sabia que tinha uma rua com meu nome.
- Tem, é a rua que eu moro, a rua de cima desta.
Ele sorriu, e o seu filho que estava com o pé em cima da água marrom esverdeada falou com orgulho “meu pai tem nome de rua !”, e deu risada.
A Gisele sabia que normalmente as ruas tinham nome de presidente, heróis, doutores... ela não deu risada, apenas parou com olhar reflexivo.
Terminei de fazer o cadastro e segui minha vida com a sagaz felicidade de morar numa rua com o nome de alguém conhecido. Apesar de não ser grande coisa morar onde moro, as coisas às vezes fazem um sentido esquisito.
Ao chegar em casa escolhi um sabonete no armário do banheiro, tomei banho, e depois me enxuguei numa tolha quase fofa, recém lavada com sabão em pó e amaciante...o que era mesmo que eu tinha que fazer quando chegasse em casa ?
Tentei me lembrar, era algo importante... andei pela casa ... fui até a janela : vi a carroça subindo a rua com Gisele e o José Antonio dos Santos.O que era mesmo que eu tinha que fazer ?

Roberta Villa

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