As menininhas

Posted: domingo, 18 de janeiro de 2009 by O Blog dos Poetas Vivos in Marcadores:
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Tinham rostos de porcelana e barrigas d’água.
A primeira, derradeira vez que as vi, lembro-me espantosamente bem. Meu corpo estava cansado e minha vista embasada pela fome, pelo sono. Era pontualmente meio dia, hora em que o sol faz-se imenso no céu , como grande bola de fogo quando a êxtase de sua luz é tão intensa que nenhum olho humano arrisca penetrá-la - hora em que Deus nos mostra que nós não somos bosta nenhuma mesmo. Normalmente eu costumo esperar pelos outros trabalhadores para podermos almoçar todos juntos, e pra quê? Eu sempre esperei por todos, mas até então, desta forma nunca ganhei nada.
Naquele dia fiz diferente. Caminhei na frente sozinho, sentindo aquela insuportável fome acompanhada por um vazio sem fim, e quisera eu que em pouco tempo fosse preenchido por boa mistura de arroz e feijão. Sei que os demais não poderiam sentir aquilo que estava em mim, por isso talvez caminhassem tão lentamente e despreocupados.Não os culpo, no entanto, não me conformo. Percebi, pela comprovada experiência, cada um deve seguir seu próprio caminho sem esperar por segundos ou terceiros. Pois é, pense bem numa coisa : milhares de pessoas podem passar fome, porém, certamente a fome que está em nós sempre será muito mais intensa que a de outro ser qualquer deste planeta; lógico, ninguém está dentro de nós para sentir o que sentimos, ninguém.
Justamente tratei logo de sentar-me à sombra da maior e mais próxima árvore que havia por lá. Não esperei por terceiros nem segundos... e os minutos que passaram por mim (reconheço, que não me transformaram, entretanto), me acrescentaram algo para todo o resto de vida.
Foi no exato momento em que me sentei a sombra que vi a menininha. Surgiu como se fosse forte raio de sol. Aparentava ter uns seis anos, era dona de um cabelo vermelho, cor de fogo, seus olhos profundamente amendoados davam um ar melancólico ao rosto de porcelana, contudo, a voz era firme e decidida como trovão. Sentada em cima de um muro alto, torto, esverdeado de limo, gritava:
-Raquel, Rebeca, Raquel, Rebeca !!!
Enquanto gritava, batia seus pés contra o muro - até pensei que pudesse quebrá-lo, ora, jamais conseguira - aquele muro muito imponente de cimento e blocos de pedra, e ela, apenas uma menininha.
E como se brotassem das pedras, de dentro do muro saíram mais duas menininhas, iguaizinhas a outra que eu vi, com os mesmos traços e rostos de porcelana, com o mesmo olhar melancólico dos olhos amêndoa. A única diferença que pude notar entre elas era o tamanho e a cor dos cabelos; a menorzinha, uns quatro anos, era loura como luz e vida e respondia pelo nome de Raquel. A outra, Rebeca, aparentava o dobro da idade da lourinha, tinha cabelos cor de terra, marrons de fios grossos, e naquele momento era a dona da bola.
- Miriam, eu truxi a bola.
- Vamos, saí daí de cima – gritavam, a pequena Raquel e a maior, Rebeca.
Então a ruiva menininha Miriam saltou, como pimenta, jogou a bola no meio da rua. E gritava, e pulava, e suava.Todas faziam como ela. E a rua era puro barro. Todavia, há um plano mágico no qual todo suor cai na rua para ir se misturar ao solo; depois ali nascerá uma plantinha (talvez flor de enfeite ou erva de chá, ou talvez erva-daninha). Assim as menininhas brincavam de bobinho com a bola.
Esqueci por um instante minha fome, estava com um questionamento fixo, da onde saia tanta menininha? Olhei bem para o muro, ele devia ter no máximo uns três metros de comprimento, elas tinham saído dali. Esmiuçando o olhar pude enxergar no final daquele muro havia uma abertura. Discretamente fui arrastando meu corpo e me distanciando da sombra para ver melhor da onde tinha saído tantas menininhas.
O muro cercava um terreno nocivo bem abandonado com muito mato e lixo, achei tão estranho e sujo, não acreditei que as menininhas tinham saído de lá. Mas bem no final do desamparo tinha algo parecido com uma casinha, as paredes eram tábuas de madeira por cima alguns pedaços de telhas formavam telhado.
Naquele momento o tempo parou, hipnotizado, só retornou quando percebi uma mulher pálida e sem face saindo do interior das tábuas e me olhando com angustia e reprovação. Caminhou até o muro e gritou:
- Entra, vocês não tão vendo que eu preciso de ajuda pra por o lixo pra fora.
E uma delas respondeu - já vou mãe. Rapidamente eu me levantei e fui ajudá-la, pretendia por o lixo para fora necessitava de ajuda forte e viril, pois era lixo de mais.
Fui ao encontro da mulher espectro e me surpreendi, pois o grande lixo do qual falara nada mais era que uma sacola de plástico com alguns papéis, fotos, e planos amassados. Ela recusou minha ajuda, baixou seus olhos para não me encarar. Sim, ela também tinha olhos, mas não eram amêndoas, apenas uvas-passa. Tive de analisá-la, pois se quis saber da onde vinha tanta menininha e se era ela a mãe, a resposta estava bem a minha frente. A mãe não tinha semblante nem nome, a mãe tinha um longo cabelo de cor desbotada, vestia uma saia cumprida como as irmãs da igreja e na barriga da mãe havia uma bola. Dentro da bola uma semente.
Mais uma vez, surgindo do nada das tábuas e atravessando as pedras saiu outra menininha. Fiquei impressionado - uma vez quando era garoto fui ao circo e vi sair coelho de cartola – agora, o que passava diante dos meus olhos era mais do que um truque, a Realidade. E a ultima e mais alta menininha que vi, na áurea dos dez anos, abraçou sua mãe num sentimento de cúmplice já podendo prever seu destino. Aquela mulher embora sem face era o seu espelho. Perguntei o seu nome.
-Débora.
Débora, a grande juíza, observava a tudo com coragem, às vezes interrompida por um longo suspiro. Ela não queria brincar com a bola, não tinha a mesma alegria insana das outras. Apesar do mesmo rosto de porcelana e de sua barriga d’água ela já não tinha as manchas de verme, nem os pés descalços. Parecia estar pronta para ir a algum lugar, no entanto, permanecia imóvel, como rocha, abraçava sua mãe, olhava amplamente pelas irmãs e às vezes suspirava.
Suspirava ...
As outras menininhas com prazer, jogavam a bola para o alto como se lançassem óvulos; a bola na barriga da mãe era pesada. A mãe desgostosa fitava a vista para baixo, paria pesos-pena no mundo. O mundo é uma grande bola e não tem pena, brincará com as menininhas. O ato consumado. E a outra suspirava.
Começou a ventar. A bola das menininhas perdeu a direção, a mãe gritou para que não perdessem a perdessem. O longo, liso e negro cabelo de Débora voou como um manto de luto no horizonte.O sol ficou tímido e se afastou um pouco. Meu horário de almoço estava por acabar, e eu nem sequer tirei a marmita da sacola plástica.
Não estava mais com fome, entreguei minha comida àquela Senhora e lhe disse “Deus te abençoe”. Ela não olhou na minha cara, segurou a sacola plástica em suas mãos e gritou: -Entra, vocês não tão vendo que preciso de ajuda pra por o lixo pra fora..E uma delas respondeu - já vou mãe.
Virei as costas, fui embora. Suspirei. Quis para sempre esquecê-las...
... como posso?

Roberta Villa

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